Artesãos da paz, sem violência

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14/01/2017 - 14:00

É na família e na escola que se aprendem a ética da fraternidade e a coexistência pacífica

No dia 1.º de janeiro a Igreja Católica comemorou o 50.º Dia Mundial da Paz e o papa Francisco enviou a toda a Igreja, mas também aos governantes, uma mensagem densa sobre “a não violência, como estilo de uma política para a paz”. O pressuposto de toda a reflexão do pontífice é o reconhecimento da alta dignidade de cada pessoa, contra a qual não se deve cometer violência: “Nas situações de conflito (...), façamos da não violência o nosso estilo de vida”.

E quanta violência acontece cada dia em São Paulo e no mundo inteiro! Nas relações interpessoais, recorrer a ela é uma tentação para resolver conflitos e alcançar, pelo uso da força, objetivos almejados. Não é coisa boa nem atitude civilizada, mas acontece.

Entre povos, continua a haver muita prepotência e o uso da força destruidora da guerra para resolver controvérsias, ou para impor interesses de um país sobre outro. É uma triste constante na História da humanidade.

Há violência demais: como mudar isso? Será possível fazer cessar a violência contra as pessoas e os povos e substituir as armas e a violência absurda das guerras pelas vias da razão, da negociação e do diálogo, com base no direito, na justiça e na equidade? Francisco, na lógica da pregação constante da Igreja e dos seus predecessores, apela mais uma vez em favor da paz e para que a não violência seja o modo de resolver as controvérsias nas relações sociais e internacionais.

O século 20 foi muito violento e as lições que deixou parecem, aos poucos, ser esquecidas, com o risco de se acabar em violências ainda piores. O papa chama a atenção para a “terrível guerra mundial aos pedaços” que se vive na atualidade em diversos países e continentes: guerras abertas, terrorismo, criminalidade, ataques armados imprevisíveis, abusos contra migrantes e vítimas do tráfico humano, devastação ambiental...

Algo assim seria capaz de edificar a paz ou de trazer algum bem duradouro? A História ensina que não. Ao contrário, desencadeia ódios, represálias e espirais de conflitos letais, que beneficiam apenas poucos senhores da guerra! O fruto da violência nunca será a paz: será mais violência e as vítimas serão, sobretudo, os indefesos, os mais fracos, crianças, idosos, doentes, civis, mulheres, os pobres em geral.

Francisco recorda que Jesus Cristo, embora vítima de violência, ensinou a não usar a violência, pregou incansavelmente o amor de Deus, que acolhe e perdoa; a perdoar e amar os inimigos e não retribuir o mal com o mal, nem a violência com violência; mostrou o caminho da não violência, que ele mesmo percorreu, até à morte na cruz. Somente a renúncia à violência é capaz de desarmar os violentos.

O coração humano é, no fundo, o campo de batalha onde se resolve o problema da violência e se abraça a paz; é de lá que se originam propósitos e ações violentas. E também é do coração curado de sua sede de ódio e vingança que podem vir a renúncia a toda forma de violência e as intenções e os propósitos de paz.

É realista pensar assim? Certamente. Do contrário, deveríamos concordar com quem afirma ser a lei da selva o que, em última análise, move o ser humano.

O papa Bento XVI, a esse propósito, afirmou que a não violência, para os cristãos, não é mero comportamento tático, mas um modo de ser e a atitude de quem está convicto do amor de Deus e do seu poder, a ponto de não ter medo de enfrentar o mal, usando apenas as armas do amor e da verdade (18/2/2007).

A não violência não é passividade, nem rendição covarde. Ela é resposta lúcida e corajosa ao mal com o bem, que leva a quebrar a lógica da violência. Foi o que fizeram conhecidos construtores da paz, como o Mahatma Gandhi, Martin Luther King e tantos outros. Foi também o que fez Madre Teresa de Calcutá, ao consagrar sua vida àqueles que não contam e são descartados pela sociedade. “Não necessitamos de bombas e de armas; não precisamos destruir, para edificar a paz. Precisamos apenas estar juntos e nos amar uns aos outros (...). E poderemos superar todo o mal deste mundo”, disse, ao receber o Prêmio Nobel da Paz (11/12/1979). Madre Teresa dedicou sua vida a ir ao encontro das vítimas da indiferença e da violência.

Ao manifestar seu apreço pelo serviço prestado por líderes de várias religiões às vítimas de injustiças e violências, o papa reafirma, como já fez em mais de uma ocasião, que a violência é contrária aos objetivos da religião e é uma profanação do nome de Deus; não se pode invocar a Deus para promover a guerra ou fazer violência contra outrem. “Nunca nos cansemos de repetir: jamais o nome de Deus pode justificar a violência. Só a paz é sagrada. Não a guerra!”

A não violência requer a educação para a paz, desde a mais tenra idade, no convívio familiar e na escola. É ali que se pode aprender a ser violento, mas, também, a ser respeitosos, a superar os atritos e conflitos mediante o diálogo sincero, o senso da verdade, da retidão, da justiça, do perdão e da misericórdia. É no teto familiar e no ambiente educativo que se aprendem a ética da fraternidade e a coexistência pacífica entre os diferentes, sem fazer uso da lógica do terror e do medo.

Também o convívio social mais próximo precisa aprender e ensinar a mesma lição. “Que cessem a violência e os abusos contra mulheres e crianças!”, apela Francisco. Sem essa educação como compromisso de todos, será necessário continuar a construir cadeias, em vez de escolas!

Assegurar a paz é tarefa de governantes e governados, a ser praticada todos os dias, com pequenos gestos e grandes atitudes. Com a participação de todos será possível banir da vida pessoal as palavras e os gestos violentos e ofensivos, para edificar comunidades não violentas. Todos podem ser artesãos da paz.

Dom Odilo Pedro Scherer

Cardeal-arcebispo de São Paulo

Artigo publicado em 14 de Janeiro de 2017 no  Jornal O Estado de São Paulo