Ascese quaresmal

A A
15/03/2017 - 09:45

Na Quaresma, somos convidados a rever nossa prática cristã, para avaliar o quanto ela está em sintonia com o Evangelho de Cristo e para progredirmos no caminho dos mandamentos. E nos são indicadas as práticas de penitência, para a correção daquilo que não condiz com a dignidade da vocação cristã, recebida no Batismo.

Jesus recomenda a seus discípulos: “se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, vós não entrareis no reino dos céus” (Mt 5,20). A justiça, neste caso, refere-se à santidade de vida, à retidão nos comportamentos e atitudes, na sinceridade e humildade da prática religiosa. Os escribas e fariseus são acusados com frequência por Jesus de serem falsos, hipócritas, legalistas e presunçosos na sua relação com Deus; e também duros e sem misericórdia nas relações com o próximo. Os escribas eram mestres de doutrina e religião; os fariseus eram rigoristas na observância ritual e das leis religiosas.

Jesus adverte o povo que escribas e fariseus não servem como medida e modelo para a prática da religião; e quem não for além do exemplo deles, arrisca não entrar no reino do céu. Não basta uma religiosidade exterior e formalista; é preciso “adorar a Deus em espírito e verdade” (cf. Jo 4,24) e isso também requer sincera obediência a Deus mediante a prática dos mandamentos.

A Igreja nos recorda na Quaresma que o cristão não pode orientar-se apenas por aquilo que a opinião pública em geral sustenta: “ouvistes o que foi dito... eu, porém, vos digo...” (Mt 5,21-22). A prática religiosa superficial, que se vai pela opinião geral, pode estar bem distante daquilo que o ensinamento de Cristo e da Igreja indicam. Importa, pois, aprofundar o conhecimento da fé e da moral, conhecendo melhor a Palavra de Deus e a doutrina da Igreja. Ao dizer “eu, porém vos digo”, Jesus previne contra explicações diluídas da fé e da moral, acomodadas ao gosto dos modismos e das tendências do tempo. Ao mesmo tempo, ele orienta para a busca sincera daquilo que é conforme Deus, e não conforme o gosto ou capricho humanos.

Outra recomendação de Jesus diz respeito às ofensas ao próximo, que devem ser levadas a sério porque também são ofensas a Deus. A oferta e o culto apresentados a Deus com o coração cheio de rancor ou ódio contra o próximo não agradam a Deus. “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta” (Mt 5,24). A mesma recomendação em relação às ofensas feitas ao próximo aparece no Pai Nosso, ensinado por Jesus aos discípulos: “de fato, se vós perdoardes os homens, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará. Mas se vós não perdoardes os homens, vosso Pai também não perdoará as faltas que vós cometestes” (Mt 6,14-15). O perdão que pedimos a Deus fica condicionado ao perdão sincero dado ao próximo. E o louvor só agrada ao Pai do céu, se vier acompanhado do perdão sincero dado ao próximo.

A Quaresma é o tempo favorável para a reconciliação com Deus e com o próximo. Mas também para corrigirmos os vícios de falar mal do próximo e de ofendê-lo. O Papa Francisco indicou, para a Quaresma, o jejum de palavras negativas e maldosas, trocando-as por palavras bondosas; o jejum do descontentamento, trocando-o pela gratidão; o jejum da raiva, trocando-a pela mansidão e a paciência; o jejum do pessimismo, trocando-a pela esperança e o otimismo.

O jejum quaresmal ainda poderia incluir a abstenção de julgamentos e condenações precipitadas e injustas contra o próximo; o jejum das ofensas, das palavras maldosas e impiedosas contra os outros, jejum da pretensão de ser melhores que os outros e de condenar e atacar com virulência as pessoas, só porque pensam diversamente de nós. E poderia incluir também um exame de consciência sincero e humilde, para não incorrer naqueles “ais” pronunciados por Jesus contra escribas e fariseus hipócritas, que têm uma medida de julgamento larga para si, mas estreitíssima para os outros (cf. Mt 23, 13-36). “São capazes de filtrar um mosquito e de engolir um camelo”. (cf. Mt 23.24).

A Quaresma é um tempo de revisão de vida e de purificação das intenções e das atitudes, para pensarmos sempre o que é reto e para realizar isso com a ajuda de Deus.

 

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo metropolitano de São Paulo

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO -Edição 3141 - De 15 a 21 de março de 2017