Conviver na terra com as realidades do céu

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13/05/2016 - 10:45

As festas litúrgicas desta época do ano nos levam ao coração do mistério da fé cristã. Entendamos por “mistério” um tesouro imensamente rico e inexaurível de verdade, beleza e vida. Nele, podemos entrar e nos deixar encantar; dele, podemos nutrir-nos espiritualmente e haurir forças à vontade para nossa existência, sem nunca esgotar nem diminuir sua riqueza.

Dizemos mistério, não porque ele é totalmente incompreensível, mas porque é maior que nós e nunca conseguiremos abraçá-lo inteiramente, nem colocá-lo por completo em nossa humana e limitada cabeça. O mistério da fé refere-se ao próprio Deus vivo.

Celebramos a Páscoa da ressurreição: o Filho de Deus, que se tornou humano entre nós, sofreu a morte humanamente e redimiu a própria morte, vencendo-a; abriu-nos, assim, a esperança na superação também da nossa morte: “se morremos com Cristo, também viveremos com ele” (cf. Rm 6,8). A ressurreição de Jesus representa um divisor de águas na compreensão da existência humana: não estamos voltados para a morte eterna e esta não tem a última palavra sobre nossa existência. Não é realização e mérito nosso, mas obra da misericórdia de Deus e da solidariedade do Salvador com nossa raça humana.

A Ascensão de Jesus ao céu é mais um mistério da fé, que nos encanta e enche de esperança. Jesus ressuscitado elevou-se ao céu, não para se afastar de nossa humilde condição terrena, mas para ser, junto de Deus Pai, nosso representante, intercessor e mediador perene entre o céu e a terra. A Liturgia proclama com júbilo: “a Ascensão de Jesus já é nossa vitória (...) pois, membros do seu corpo, somos chamados na esperança a participar da sua glória”.

O Filho de Deus não retornou ao céu do mesmo modo como veio ao mundo, quando se encarnou no seio da Virgem Maria: voltou, unido à nossa humanidade, já glorificado pela ressurreição. Com razão, podemos proclamar que a Ascensão realiza a perfeita “comunhão de dons entre o céu e a terra”: Em Jesus Cristo glorificado, o céu e a terra estão unidos para sempre. Deus não rejeitou a humanidade, mas assumiu-a e a redimiu no Filho, enviado a este mundo.

Esse “mistério da fé” nos enche de alegria e esperança, por sabermos que não estamos sós e desamparados neste mundo, sem rumo e sem futuro. O rumo nos é dado por Jesus, “caminho, verdade e vida”; o futuro é o Senhor glorificado no céu; lá, ele foi “preparar-nos um lugar”. Não nascemos para morrer, mas para viver e para sermos reunidos à família de Deus “na casa do Pai”. Desde agora, já podemos conviver com as realidades do céu; nossos corações podem voltar-se para o alto, cheios de fé e certeza, uma vez que lá já está, junto de Deus, a nossa humanidade (cf. oração da Missa da Ascensão).

Talvez isso seja motivo para alienar-nos das realidades da terra? Será que a fé cristã torna a pessoa alienada das realidades da família, do trabalho, do gozo das alegrias deste mundo? Impede-nos de assumir nossas responsabilidades pessoais e sociais? A Igreja ensina que não é assim que deve ser; apenas uma interpretação errônea da fé cristã afastaria as pessoas de suas responsabilidades terrenas. A fé e a esperança cristã oferecem motivos consistentes para o testemunho dos valores do bem e da justiça e nos fazem lutar contra todas as formas de “império da morte” que ainda possam oprimir a existência humana. A esperança cristã faz trabalhar com alegria por um mundo melhor para todos. Ao mesmo tempo, evita que se fixem os objetivos últimos da existência nos bens deste mundo; e isso favorece a partilha generosa, a justiça e a solidariedade.

Em Pentecostes, a Igreja comemora o mistério da contínua presença e ação de Deus no mundo e, especialmente, na Igreja de Cristo. Jesus prometeu enviar o Espírito Santo como consolador, advogado, conselheiro e força divina, que continua a agir no mundo até o final dos tempos. Deus não abandona a Igreja e a humanidade, mas é nossa companhia e faz frutificar toda obra boa do homem neste mundo.

Com a solenidade da Santíssima Trindade, contemplamos, extasiados, o mistério da fé por excelência: o mistério santo e insondável do nosso Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único, que é Deus e está na intimidade do Pai, foi quem o deu a conhecer” (Jo 1,18). Em Jesus Cristo, filho de Deus feito homem, crucificado e glorificado, vemos o rosto misericordioso e glorioso de Deus. Sim, nossa fé, celebrada na Liturgia, já nos permite experimentar na terra as realidades do céu.

Publicado no jornal O SÃO PAULO - Edição 3101 - 13 a 17 de maio de 2016