Cremos, sem ter visto

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02/05/2019 - 10:45

O início do tempo pascal oferece-nos, na Liturgia, os relatos sobre os encontros de Jesus ressuscitado com os apóstolos e demais discípulos e, também, os testemunhos destes sobre a Ressurreição de Jesus. Impressiona que eles, com todo esse privilégio, tiveram tanta dificuldade para crer naquilo que viam e ouviam, além da dificuldade ainda maior em aceitar o testemunho daqueles que relatavam sobre os encontros tidos com Jesus ressuscitado.

Maria Madalena não reconheceu Jesus ressuscitado, antes que Ele falasse o nome dela: “Maria!” Pedro e João encontraram o túmulo vazio, mas não creram antes que um anjo lhes dissesse – “ressuscitou, não está aqui” –, e antes do seu encontro pessoal com Jesus ressuscitado. Os demais discípulos o confundiram com um fantasma e só creram quando Ele lhes falou e acalmou seu coração assustado. Os dois discípulos de Emaús só o reconheceram depois de uma longa exposição sobre a palavra da Escritura e no gesto eucarístico do pão repartido. Tomé duvidou mais que todos e, antes de crer, quis ver e tocar no corpo de Jesus glorioso...

São Marcos conclui o seu Evangelho com uma síntese das aparições pascais, relatando um último encontro com Jesus ressuscitado, antes de sua ascensão ao céu (cf. Mc 16,9-16). Foi um encontro mais tenso que alegre com os “seguidores de Jesus, que estavam de luto e chorando”. Não haviam dado crédito ao testemunho de Madalena sobre o seu encontro com o Ressuscitado nem ao relato impactante dos discípulos de Emaús. Num último encontro com os discípulos, Jesus repreendeu-lhes a sua falta de fé e a dureza de coração, “porque não tinham acreditado naqueles que o tinham visto ressuscitado”.

Na interpretação dos estudiosos dos Evangelhos, essa dificuldade dos discípulos em crer na Ressurreição de Jesus joga, justamente, a favor da veracidade dos relatos e testemunhos sobre a Ressurreição de Jesus. Com certeza, os evangelistas não teriam incluído nos seus testemunhos sobre Jesus esses fatos, aparentemente negativos, se não fossem verdadeiros. Ao mesmo tempo, essa “incredulidade” das primeiras testemunhas de Jesus ressuscitado nos ajuda a entender que a Ressurreição gloriosa de Jesus, no seu corpo humano, é algo tão extraordinário, que não cabia nas expectativas deles, por mais que já conhecessem a Jesus. É obra de Deus e não do homem! Com Jesus ressuscitado, a “vida eterna que irrompe no tempo”, “a salvação e o futuro do homem” se manifestam diante de nossos olhos! O “mundo novo, recriado por Deus”, é mostrado diante dos discípulos espantados e incrédulos.

Ao longo de toda a História, a Ressurreição de Jesus foi contestada ou interpretada de maneira errônea, como se “o pensamento” ou “a lembrança” de Jesus continuassem vivos na cabeça de quem acredita... A própria Igreja acaba sendo interpretada, de maneira redutiva, como a “organização” estruturada sobre a “doutrina de Jesus”, que leva avante “a causa de Jesus” no tempo. Em vez disso, a Igreja, fiel à fé apostólica, continua a afirmar de maneira lapidar: Jesus ressuscitou dos mortos. Não é apenas a sua “doutrina” que continua. Ele mesmo ressuscitou e está vivo e glorioso; não ressuscitou para continuar a viver entre nós, como antes de sua morte na cruz: agora Ele está vivo na glória de Deus, também na sua “carne humana”, unida ao Verbo de Deus. Nós o encontramos de muitas maneiras, como Ele mesmo quer ser encontrado: na Igreja, comunidade dos seus discípulos reunida em seu nome; na Eucaristia, “pão partido para a vida do mundo”; na Palavra do Evangelho e no testemunho daqueles que o encontraram e, mesmo resistindo e custando a crer, renderam-se à evidência dos encontros com Ele, após sua morte. Continua vivo e presente em cada pessoa que sofre.

Os discípulos, obedecendo à ordem de Jesus, saíram a pregar e testemunhar pelo mundo inteiro (cf. Mc 16,15) sobre “as coisas que viram e ouviram”, mesmo a custo de prisões, torturas e do próprio martírio (cf. At 4,18-21). Na cena de Tomé, de joelhos diante do Ressuscitado, proclamando finalmente a fé mais profunda da Igreja em Jesus Cristo, também nós podemos nos incluir, proclamando com ele: “Meu Senhor e meu Deus!” E Jesus nos assegura: “Felizes aqueles que creram sem ter visto!” (Jo 20,28-29).

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 15/05/2019