Do conflito à comunhão

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12/11/2016 - 15:00

Em 2017 transcorrerá o quinto centenário da Reforma promovida por Martinho Lutero, um frade da Ordem de Santo Agostinho que deu origem a um vasto movimento que modificou a Igreja no Ocidente e provocou a quebra da unidade na mesma Igreja. A Reforma, porém, foi bem além do âmbito religioso e envolveu boa parte da Europa num longo e doloroso conflito civil e político.

Em sentido mais amplo, a Reforma também se refere a outros movimentos que atingiram a Igreja na mesma época, como o de Calvino, na Suíça, que deu origem à Igreja Evangélica Reformada, e a ação de Henrique VIII, na Inglaterra, da qual surgiu a Igreja Anglicana. A própria Igreja Católica, no mesmo contexto, iniciou uma grande reforma no seu interior, com o Concílio de Trento (1544-1563). Neste artigo, refiro-me especificamente à Reforma de Lutero, para acenar, sobretudo, àquilo que acontece 500 anos depois do início desse acontecimento marcante para a História.

A Igreja Católica, na passagem da Renascença para a Idade Moderna, carecia muito de reformas profundas; várias tentativas haviam sido feitas, mas foram insuficientes. Finalmente, por circunstâncias várias, as reformas acabaram ocorrendo de maneira traumática. O que aconteceu de 1517 em diante pertence à História e já recebeu inúmeras interpretações e reinterpretações.

Há mais tempo, em preparação para a comemoração do quinto centenário da Reforma luterana, estiveram trabalhando lado a lado os membros da Comissão Luterana-Católico- Romana para a Unidade, ligada ao Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, da Santa Sé, e à Federação Luterana Mundial. Desses esforços resultou um informe consistente e equilibrado, com o título Do Conflito à Comunhão. Comemoração conjunta católico-luterana da Reforma, em 2017.

Caberia ainda alguma leitura nova e compreensão diversa dos fatos ligados à Reforma de Lutero e às suas consequências? Pois é justamente esse um dos principais propósitos da citada comissão e da comemoração. Já é novo que se olhe para os fatos de maneira conjunta e se reflita com serena objetividade sobre o que aconteceu; que se reconheçam, sem o propósito de pronunciar sentenças, erros e acertos de ambas as partes.

É novo que se reconheça o peso de ingerências políticas na Reforma, estranhas ao foro religioso e doutrinal, com suas consequências trágicas; que se apontem os moventes e interesses de uma longa guerra fratricida, só aparentemente religiosa. As duras lições da manipulação ideológica e política da fé religiosa, em função da afirmação de interesses políticos e econômicos, precisam sempre ser recordadas e aprendidas; mais ainda em épocas como a nossa, diante do ressurgir de fanatismos e extremismos religiosos e antirreligiosos, que explodem facilmente na intolerância e ganham viés político.

A novidade boa, porém, consiste, sobretudo, no fato de se comemorar não a vitória de uns sobre outros, mas a busca sincera e humilde de caminhos para a união e para a superação das feridas dolorosas, deixadas por cinco séculos de conflitos. De fato, esse esforço ecumênico das Igrejas Luterana e Católica já está em andamento há mais tempo; da parte católica, o Concílio Vaticano II (1962-1965) teve no ecumenismo um de seus principais propósitos e produziu diretrizes importantes nesse sentido; o mesmo já vinha ocorrendo da parte luterana.

Nesse sentido, foi muito significativa a recente participação do papa Francisco, na catedral luterana de Lund, na Suécia, do início das comemorações do quinto centenário da Reforma luterana. Espíritos menos ecumênicos talvez tenham ficado perplexos ao ver o papa participando da comemoração de um fato doloroso para a própria Igreja Católica. O gesto do pontífice, porém, fala de modo eloquente desse esforço de diálogo e superação dos ressentimentos e acusações recíprocas, para passar “do conflito à comunhão”.

Os termos da Declaração Conjunta de Lund, de Francisco e dos representantes da Igreja Luterana, destacam que, “graças ao diálogo e ao testemunho compartilhado, já não somos estranhos; antes aprendemos que aquilo que nos une é maior do que aquilo que nos separa”. Não se negam as dificuldades e responsabilidades recíprocas: “Lamentamos, diante de Cristo, que luteranos e católicos tenham ferido a unidade visível da Igreja. Diferenças teológicas foram acompanhadas por preconceitos e conflitos e instrumentalizou-se a religião para fins políticos”.

A manifestação comum também fala da necessidade de superar os conflitos históricos, que ainda continuam a dificultar a reconciliação. Se o passado não pode ser modificado, “aquilo que se recorda e o modo como se recorda podem ser transformados. As feridas do passado precisam e podem ser curadas; e pode ser mudada a visão que se tem uns dos outros”. Ódios e violências do passado e do presente, levados a efeito em nome da religião, “devem ser rejeitados”. Portanto, assume-se o compromisso de continuar a trabalhar para a remoção das dificuldades “que nos impedem de alcançar a unidade plena desejada por Cristo”. Os obstáculos, além dos históricos e culturais já cristalizados, são também teológicos e doutrinais; mas também esses precisam ser superados: “Desejamos levar adiante, inclusive renovando, o nosso empenho no diálogo teológico”.

O ecumenismo e a reconstrução da unidade na Igreja também se fazem pelo esforço compartilhado para servir ao próximo. Por isso não falta o apelo para que católicos e luteranos trabalhem em conjunto para aliviar os sofrimentos de tantas pessoas e para cuidar do ambiente da vida, a nossa “casa comum”. A Declaração de Lund assinala um passo importante no esforço para passar “do conflito à comunhão” entre as Igrejas cristãs.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo

Publicado no jornal "O Estado de S.Paulo", edição de 12 de novembro de 2016