Tentações de Cristo e nossas tentações

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08/03/2017 - 19:30

Logo no primeiro domingo da Quaresma, a Igreja lê o evangelho das tentações de Jesus no deserto (cf. Mt 4,1-11). Na narrativa de S. Mateus, o trecho está situado logo depois do batismo de Jesus no Jordão e antes do início de sua pregação pública: “o Espírito conduziu Jesus para o deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1).

O contexto da narração impressiona: pouco antes, no Batismo, Jesus é proclamado solenemente pela voz de Deus Pai: “este é meu filho amado; nele está o meu agrado” (Mt 3,17). Jesus, que se colocou entre os pecadores para receber o batismo de penitência como todos, é o Filho querido de Deus. Após o batismo, Jesus “foi conduzido pelo Espírito de Deus para o deserto”, para enfrentar as tentações (cf. Mt 4,1). Ele é o representante da humanidade, que se submete também a ser tentado como todos os homens, para lhes ensinar o caminho da vitória sobre o tentador e a tentação!

O deserto é, na Bíblia, o lugar da solidão, da escuta e do encontro com Deus. Mas também é o lugar da prova, da infidelidade a Deus, da desorientação, do castigo, da aridez da vida... Jesus quis experimentar nossos desertos e nos ensinar o caminho da superação deles. O Papa Bento XVI recordou que o deserto também pode ser o lugar do discernimento, de apreciar com alegria a pureza do céu, de ver claro as estrelas, de achar a estrela-guia e o caminho da saída desse ambiente árido e inóspito...

Jesus jejua, reza e se prepara para realizar a grandiosa missão recebida do Pai, ao vir ao nosso mundo. E o diabo não perde tempo. Tenta Jesus pelo seu lado humano, inseparável do seu lado divino de Filho de Deus: “se és o Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!”. A tentação não é, em primeiro lugar, a do pão para matar a fome, mas da dúvida sobre quem Jesus entende ser: “se és o Filho de Deus”... O tentador pretende que Jesus abandone sua identidade e sua missão, que seja infiel a Deus Pai. Jesus vence a tentação, mantendo-se fiel à palavra de Deus, não dando ouvidos à palavra do diabo: “está escrito: não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4).

A segunda tentação é mais uma provocação à consciência de Jesus e para colocar Deus à prova: “se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Deus dará ordens a seus anjos para que não firas teu pé numa pedra” (Mt 4,6). Quer o tentador que Jesus ponha Deus contra a parede e o obrigue a fazer um milagre, por ordem e capricho seu... É uma tentação tremenda, mas não rara: exigir provas de Deus, dar ordens a Deus, mostrar que se é capaz de usar e manipular Deus... Isso é grave desrespeito à santidade e à soberania de Deus e pretensão inaudita de ser superior a ele. É a tentação da magia e da ostentação de poderes maiores que os do próprio Deus. Mandar em Deus foi sempre uma tentação do homem! Jesus não entra no jogo dessa tentação e recorda ao diabo a palavra da Escritura: “não tentarás ao Senhor teu Deus!” (cf. Dt 6,16).

A terceira tentação é a mais radical de todas: adorar o próprio diabo, com a promessa de receber dele o mundo inteiro e seus reinos (Mt 4,8-10). Nada menos que trocar a adoração a Deus pela submissão ao diabo, pensando em receber do maligno vantagens e recompensas! Como se o mundo dependesse do diabo e não de Deus; como se todos os reinos deste mundo não fossem de Deus e pertencessem ao diabo! Jesus não cai nessa e espanta o diabo com mais essa recomendação da Palavra de Deus: “adorarás o Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto!” (Mt 4,10). Mas essa tentação continua a rondar as pessoas; quantos são tentados a abandonar a Deus e sua lei, o bem, a dignidade, a honestidades e a virtude, acreditando que seguir o caminho da maldade, da injustiça, da corrupção, da soberba e da vaidade traz mais vantagens para a vida... Continua a tentação de se sujeitar ao diabo, que é falso e engana. De vender a alma ao diabo!

Por isso, nas promessas do Batismo, são colocadas diante do candidato a ser cristão duas questões fundamentais: “Renuncias a Satanás? Crês em Deus?”; é o mesmo que perguntar: De qual lado quer ficar: com o diabo ou com Deus? Nós respondemos que queremos ficar com Deus. Por isso, temos que enfrentar a vida inteira essa batalha e essa escolha fundamental: estar com Deus ou com o diabo. É isso que está em jogo nas nossas tentações, que são resumidas nas três tentações de Cristo. Jesus nos deixa o exemplo: como ele, podemos vencer o tentador mediante o jejum, a oração e a escuta fiel da palavra de Deus.

 

Cardeal Odilo P. Scherer

Arcebispo de S.Paulo

Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO, de 08 03 2017