Homilia na Missa do Centenário Do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns

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14/09/2021 - 10:15

Saudações

Neste dia, em que a Igreja celebra na Liturgia a festa da Exaltação da Santa Cruz, recordamos também o centésimo aniversário do Cardeal Paulo Evaristo Arns, de ilustre e saudosa memória. Convido, pois, a todos para este momento de reflexão sobre a palavra de Deus e também sobre a esperança que animou Dom Paulo, 5º Arcebispo Metropolitano desta Sé de São Paulo.

A Igreja olha para a cruz salvadora de Cristo com profundo reconhecimento e gratidão Àquele que, condenado à dura morte de cruz, entregou a sua vida por amor à humanidade. A cruz lembra o cálice amargo, muito amargo, que nosso Salvador aceitou beber até o fim, derramando até à última gota o seu precioso sangue por nós.

E por que o fez? Por que ele, inocente e justo, que havia feito somente o bem, aceitou submeter-se a tão grande maldade humana, que o conduziu a morte tão dolorosa e infamante? O mistério da cruz de Cristo desafia a nossa compreensão humana, mas torna-se luminoso à luz da fé cristã. O próprio Jesus, no diálogo com Nicodemos, nos dá a chave de compreensão desse mistério de dor e ultraje, amor e redenção. “Tanto Deus amou o mundo, que lhe entregou seu Filho unigênito, para que não morra o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).

Jesus aceitou seguir até o fim o caminho da cruz para nos mostrar até onde o amor misericordioso de Deus é capaz de ir, para nos alcançar e salvar. Deus podia ter intervindo na paixão e morte de Jesus, destruindo seus inimigos e resgatando seu amado Filho unigênito das mãos dos pecadores. No entanto, “Deus não enviou seu Filho ao mundo para o condenar, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3,17). Deus não quer a morte do pecador, mas sim, que se converta e viva!”. Jesus, entregando a sua vida sobre a cruz, representa a mão de Deus perenemente estendida ao homem pecador e a certeza da sua misericórdia, que perdoa e salva.

Na ressurreição de Jesus, Deus mostrou que também não queria a morte de seu Filho na cruz, mas que ele manifestasse a plenitude do amor e da vida, o futuro pelo qual vale a pena estender nossas mãos para o Crucificado, acolhendo o amor de Deus e o Espírito Santo, hálito da vida nova, que Jesus entrega à humanidade mediante a sua paixão, morte de cruz e ressurreição. A cruz de Cristo, portanto, não é mais um símbolo de morte e aniquilamento, mas de esperança, misericórdia e vida. Como os hebreus no deserto olhavam com fé para a serpente de bronze e eram curados do veneno da serpente enganadora, assim nós olhamos para Cristo na cruz, cheios de fé e esperança, e somos curados do veneno da mesma serpente enganadora, que segue produzindo a morte. Jesus na cruz é sinal de esperança e vida.

Comemoramos o centenário do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e estamos aqui para recordá-lo, como um dom que Deus concedeu à humanidade e, particularmente, à Igreja e à comunidade de São Paulo. Entre os muitos aspectos da pessoa e da ação de Dom Paulo, desejo lembrar que ele foi um homem de esperança e seu serviço à Igreja e à comunidade humana teve sempre a marca da esperança, ainda que a cruz fosse pesada para ele e para o povo.

Seu lema episcopal - “de esperança em esperança” –, é inspirado na palavra de Deus e serviu de orientação para sua vida e ação episcopal. Sua nomeação episcopal deu-se em maio de 1966, menos de um ano após o encerramento do Concílio Vaticano II (1962-1965). O Concílio havia despertado grandes esperanças e trazido a promessa de uma nova primavera para a Igreja, que necessitava muito de renovação na sua vida interna, ainda marcada pelas circunstâncias vividas por ela no século anterior.

O magistério da Igreja havia feito severas desaprovações ao modernismo e ao racionalismo, avessos à dimensão religiosa da vida humana e da cultura. E condenou com firmeza as ideologias materialistas, não apenas pelo cerceamento à liberdade religiosa, mas também por causa da violação sistemática de outros direitos humanos fundamentais. Superados os dramas da 2ª. guerra mundial, a humanidade queria paz e os povos do “terceiro mundo” aspiravam à independência e a condições de vida dignas. Com o esforço internacional para tecer novas relações entre os povos, também a Igreja passou a rever suas relações com o mundo.

O papa São João XXIII, ao convocar o Concílio, queria deixar entrar ares frescos na Igreja, fazendo-a passar de uma postura fechada e defensiva para uma atitude mais acolhedora e dialogante em relação à cultura, à ciência, à política e às religiões. Ela não abdicou de suas convicções, mas dispunha-se a encontrar e ouvir mais, para perceber melhor as razões das outras partes. Propunha-se a somar com todos aqueles que buscassem sinceramente o bem da humanidade, ainda que as convicções fossem diferentes das suas. O início da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, sobre a Igreja no mundo contemporâneo, expressou bem essa nova postura da Igreja: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje são também as alegrias e as esperanças, aas tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).

Foi no contexto desse tempo novo, marcado por otimismo e esperança, que Dom Paulo foi consagrado Bispo Auxiliar de São Paulo. Seu lema “ex spe in spem” - é inspirado na Carta aos Romanos (1,17) - “ex fide in fidem” – “da fé para a fé” (Rm 1,7) e na Carta aos Hebreus, onde o autor exorta a perseverar na esperança, sem esmorecer, “pois é fiel aquele que fez a promessa” (cf Hb 10,22-25).

As virtudes teologais da fé, esperança e caridade devem ser a marca distintiva do cristão. A esperança, como virtude humana, leva a uma atitude positiva diante da vida, desencadeando energias aptas à superação de dificuldades e a alcançar as metas, com dedicação e paciência. A esperança cristã nos projeta ainda para além daquilo que, humanamente, seríamos capazes de alcançar e sua base é a fidelidade de Deus, que se faz o “fiador” da nossa esperança (cf Hb 6,13). O objeto maior da esperança cristã são as promessas divinas, como a misericórdia, o perdão, a vida e a felicidade eterna. Esses bens, no entanto, não estão desvinculados das justas esperanças para esta vida: pelo contrário, tornam-se fonte de dinamismo e de paciente busca dos bens que expressam a dignidade, o valor e a beleza da vida neste mundo.

Com o passar dos anos, o lema de Dom Paulo mostrou-se cada vez mais inspirador e confortador para ele. Em 1970, com apenas 4 anos de episcopado, ele foi nomeado arcebispo de São Paulo pelo papa Paulo VI, que lhe conferiu o pastoreio de toda a metrópole paulistana. Na mesma época, São Paulo e o Brasil viveram anos difíceis, durante os quais Dom Paulo, com destemor e paciência, indicou caminhos de esperança e superação. Diante das situações aviltantes para a dignidade humana, ele empenhou-se na realização de pequenas e grandes esperanças das comunidades da periferia urbana e do povo empobrecido. Dom Paulo também se empenhou e encorajou muitos outros a se empenharem na normalização da vida democrática no Brasil.

As esperanças de Dom Paulo para o povo e para a Igreja continuam a valer em nossos tempos. Ele queria uma Igreja, povo de Deus, onde todos tivessem seu lugar e participassem da missão do testemunho de Jesus Cristo e do Evangelho. Hoje o Papa Francisco nos chama a sermos uma Igreja “sinodal e participativa”. Dom Paulo queria uma Igreja ao lado dos pobres e dos que sofrem, testemunhando o amor misericordioso de Deus e a dignidade de cada pessoa, amada por Deus e pela qual Jesus morreu na cruz. O Papa Francisco nos chama a sermos uma “Igreja em saída missionária”, qual “hospital em campo de batalha” ao lado dos feridos e caídos, e também comprometidos no cuidado da casa comum” e na fraternidade da grande família humana.

Queria Dom Paulo, a superação das grandes desigualdades e injustiças sociais e econômicas do Brasil e do mundo. Sonhava com a cidade sem ninguém abandonado nas periferias e pelas ruas e praças. Esperava que todos pudessem ter trabalho digno, moradia, educação e saúde. Esperava que o convívio urbano fosse sem violência e que todos pudessem viver em paz e harmonia nesta casa comum.

Seria demais esperar que também nós renovemos nossa disposição para lutar, a fim de que essas esperanças “normais” da humanidade, um dia, se tornem realidade? Animados pela grande esperança, que não desilude (cf Rm 5,5), continuemos a nos empenhar no dia a dia, com coragem e paciência, na edificação de um mundo melhor para todos. “Coragem”, repetia Dom Paulo sempre! Deus sustente nossa fé, esperança e caridade. Jesus na cruz nos dê coragem e perseverança!

Cardeal Odilo P.Scherer

Arcebispo de São Paulo

Catedral de São Paulo, 14.09.2021