O que será de nós?

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05/11/2020 - 17:00

As  c e l e br a ç õ e s  Igreja, no mês de novembro, colocam- -nos diante das questões que dizem respeito ao nosso futuro, mas marcam nosso presente de maneira significativa. Iniciamos o mês com a Solenidade de Todos os Santos, contemplando a “Igreja celeste”, exaltada na Liturgia como “a cidade do céu, a Jerusalém do alto, nossa mãe... para a qual caminhamos pressurosos, peregrinando na penumbra da fé” (cf. Prefácio da Missa). A comunidade dos santos no céu, de fato, é a Igreja que já chegou ao seu grande objetivo: a comunhão com Deus, em sua glória, na vida eterna.

Logo em seguida, no dia 2 de novembro, lembramos os falecidos e proclamamos nossa fé na “ressurreição da carne” e na vida eterna, conforme a promessa de Deus ao longo de toda a história da revelação divina. Por crer nisso, elevamos preces e súplicas pelas pessoas que já nos deixaram e pedimos a Deus que sejam acolhidas no abraço de sua misericórdia infinita. Ao mesmo tempo, refletimos sobre a fragilidade e a fugacidade da nossa vida neste mundo. Por muito que gostemos daqui e por mais que estejamos apegados à vida neste mundo, temos a clara consciência de que esta vida passa e ainda não é tudo o que Deus tem para nós. Somos feitos para mais, para olhar para o alto e confiar em Deus, buscando-o todos os dias.

Ainda em novembro, celebramos a conclusão do Ano Litúrgico e o início de um novo. A Solenidade de Cristo Rei, que marca o término do Ano Litúrgico, recorda-nos mais uma vez a soberania de Deus e de seu Reino e o senhorio de Jesus Cristo Salvador. No final da História e do nosso peregrinar sobre a terra, encontraremos Jesus Cristo, Senhor e Juiz da História e do homem, e a decisão suprema e definitiva sobre a nossa existência: a vida eterna ou a morte eterna. Logo no início do novo Ano Litúrgico, no primeiro Domingo do Advento, aparece mais uma vez essa perspectiva de nossa vida: neste mundo, somos chamados a ser colaboradores vigilantes e generosos na obra do Reino de Deus.

Na lógica do anúncio cristão, a Igreja coloca-nos diante das “realidades últimas”, conhecidas na doutrina e na teologia como os “novíssimos”. Trata-se das realidades da nossa fé que ainda estão por vir e para as quais nos preparamos durante a vida neste mundo: morte, julgamento de Deus, céu, inferno, purgatório e vida eterna. Essas questões fazem parte essencial da nossa fé e não poderiam ser ignoradas ou deixadas de lado em nossa pregação e Catequese. Por isso, a Liturgia ajuda-nos a entrar sempre mais nesses “mistérios” por meio da celebração da fé e da mistagogia, auxiliando-nos a acolhê-los em nossa vida.

A vida cristã é marcada pela esperança e pela referência às “realidades futuras”. Isso está presente na Revelação divina, na Escritura, na profissão de fé e na Liturgia da Igreja. Se tirarmos do anúncio, da Catequese e do testemunho cristão a referência à nossa esperança nos bens prometidos, empobreceremos enormemente a fé da Igreja e a contribuição originária do Cristianismo para a vida e a cultura dos povos.

Isso nada tem a ver com “alienação” em relação às realidades presentes e desinteresse pela vida e pelo cumprimento de nossos deveres. A esperança cristã, bem compreendida, não nos leva a olhar apenas para o céu, alheios às coisas da terra. Ao contrário, ela nos oferece luzes, orientação e motivos fortes para o nosso engajamento na transformação da nossa vida e das “realidades terrestres”, para que nelas apareçam sempre mais os sinais do Reino de Deus. A esperança cristã não tem nada de alienante, mas leva a edificar um mundo melhor e a lutar para a superação dos sinais de morte e de maldade presentes entre nós. A esperança cristã oferece-nos uma visão original sobre a vida humana, a História, o presente e o futuro da nossa existência. Ela nos ajuda a não cairmos na tentação de identificar, simplesmente, o Reino de Deus com nossas realizações humanas e limitadas, como se tudo dependesse apenas de nós e como se tudo se limitasse às realidades presentes.

A esperança sobrenatural ajuda-nos a não transformarmos a Igreja numa espécie de “ONG do bem”, semelhante a qualquer partido ou organização humana. Nossa esperança ultrapassa nossas realizações terrenas e está orientada para a sua realização plena em Deus. 

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Publicado em O SÃO PAULO, na edição de 05/11/2020