Do Carmelo de Tanger

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No Marrocos há um ano, Irmã Maria Ana de Jesus, monja carmelita, conta sua experiência missionária em um país muçulmano
Publicado em: 18/10/2016 - 15:45
Créditos: Fernando Geronazzo / Jornal O SÃO PAULO
Considerada a porta de entrada para o Norte da África, na costa do Estreito de Gibraltar, a cidade de Tanger, no Marrocos, é o segundo centro econômico daquele país. Por ali passaram várias civilizações e culturas desde a Antiguidade. Ao longo da Idade Média, foi disputada por vários reinos muçulmanos e cristãos. Nas últimas décadas, assistiu a um rápido desenvolvimento e modernização, e hoje recebe inúmeros turistas e migrantes. 
Em meio ao chamado “almuedão”, aquele que anuncia em voz alta o momento das cinco preces islâmicas diárias, do alto de uma mesquita no extremo da metrópole, um grupo de carmelitas recita os salmos do Ofício Divino de dentro da clausura de um humilde mosteiro.  
 
As nove monjas, de sete nações diferentes, vivem no Mosteiro da Sagrada Família e Santa Teresinha do Menino Jesus, e pela oração e contemplação são presença missionária da Igreja em meio a um país predominantemente muçulmano. 
Irmã Maria Ana de Jesus foi uma das últimas monjas a chegar ao Carmelo de Tanger, em outubro de 2015. Embora chilena de nascimento, a Religiosa de 46 anos vivia no Carmelo de Campinas (SP) desde 1992 e professou seus votos perpétuos na Ordem Carmelita Descalça em 1997. 
“Daqui do terraço do Carmelo, podemos ver uma pequena porção do oceano Atlântico e, ao fundo, a Espanha. Também enxergamos uma pontinha de Gibraltar e a belíssima cadeia montanhosa que contorna a cidade”, escreve Irmã Maria Ana, em um relatório sobre suas impressões a respeito da missão. 
As primeiras carmelitas chegaram ao Marrocos em 1931, vindas da Espanha. Elas adquiriram um terreno no limite da cidade, onde começaram a edificação do mosteiro, inaugurado em 1934. 
A chegada de irmãs mais jovens para a comunidade monástica, iniciada em 2008, se fez necessária para salvar o carmelo marroquino da extinção, diante do envelhecimento das religiosas que ali residiam e da enorme dificuldade para o surgimento de vocações nativas.
 

Minoria cristã

Segundo o Anuário da Igreja Católica no Marrocos, de 2016, nas duas arquidioceses existentes no país – Rabat e Tanger –, existem aproximadamente 25 mil cristãos católicos, 2,5 mil dos quais vivem em Tanger. “Como se vê em número, é uma Igreja minúscula. Há mais católicos no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, do que em todo o Marrocos”, relata Irmã Maria Ana. De acordo com a Carmelita, a presença cristã no país diminui à medida que a população europeia que ali habita vai desaparecendo. 
Algo que a impressiona bastante no Marrocos é como a presença de um único religioso é valorizada pelos católicos locais. “Quando cheguei, logo nas primeiras horas, telefonei ao nosso arcebispo, Dom Santiago Agrelo, para saudá-lo. Ele prontamente disse-me: ‘Estou indo aí, chego logo’. Antes de três horas de minha chegada em Tanger, ele já estava lá”, recorda. 
 
Por outro lado, a Monja estranhou muito a falta da participação dos fiéis nas celebrações. “Em uma ou outra missa há religiosas, duas ou quatro, e raramente há um leigo na assembleia. Podem imaginar como isso me impactou no primeiro mês!”
No Natal, a Missionária conseguiu ter outra compreensão do significado de sua presença no país. “Estávamos só as monjas na celebração. Naquela liturgia, senti uma grande alegria, porque ali havia uma comunidade pequena, insignificante do ponto de vista humano, mas unida a algumas centenas de cristãos em todo o Marrocos, celebrando o nascimento de Jesus, nosso Senhor.”
A possibilidade de crescimento do número de cristãos vem por parte dos imigrantes da África subsaariana, que por diversos motivos estão chegando ao Marrocos. Há também um pequeno número de cristãos ortodoxos e protestantes. “Já houve no Marrocos uma grande comunidade judaica, muitos dos quais imigraram para Israel na segunda metade do século XX. Atualmente, são alguns milhares e também como nós, cristãos, têm liberdade de culto”, informou a Religiosa.
 

Perseguição

Nas primeiras décadas do século XX, Tanger recebeu o status de cidade internacional. Por conta disso, tem a fama de lugar de tolerância e convívio respeitoso entre diversos povos e crenças religiosas. “Já ouvi diversas pessoas lembrando saudosamente os tempos em que aqui estavam em maior número os judeus e os cristãos, de como se festejava em comunhão e com muita alegria, entre muçulmanos, cristãos e judeus, as festas religiosas uns dos outros”, contou Irmã Maria Ana. Ela informou, ainda, que milhares de judeus migraram para o Estado de Israel e os cristãos de origem europeia diminuíram sensivelmente. “Porém, perdura principalmente nas pessoas adultas e idosas este espírito de respeito e até de orgulho, porque se convive bem entre culturas tão diversas”, completou.  
 
Praticamente todos os cristãos do Marrocos são estrangeiros e possuem liberdade para expressar a sua fé, mas a situação é bem diferente se um muçulmano manifestar o desejo de se tornar cristão. As conversões dos marroquinos a outras religiões não são bem-aceitas pela comunidade islâmica local, além de serem proibidas por lei. O artigo 220 do Código Penal do país pune com seis meses a três anos de prisão “qualquer um que incitar um muçulmano a fraquejar na fé ou a se converter a outra religião”.  Quando acontece de um muçulmano aderir ao Cristianismo, esse quase sempre se vê obrigado a viver escondido ou até a deixar o país. 
 
Estima-se que 60% dos novos cristãos marroquinos se converteram graças a contatos pessoais com outros cristãos; 30% por meio da televisão e da internet, e 10% em decorrência do trabalho de missionários. Há três canais de TV cristãos no Marrocos, que levam ao ar testemunhos em dialeto local, além de música religiosa e sermões. Para não chamar a atenção e evitar reações hostis, os encontros religiosos são realizados em apartamentos de bairros de classe média.
 

Sinal de paz

 
Na celebração dos 80 anos do Carmelo de Tanger, em 2014, o prepósito-geral da Ordem Carmelita Descalça, Padre Saverio Cannistrà, afirmou que essa comunidade monástica nasceu de um desejo de paz verdadeira e duradoura. “Quando o mundo cristão e o mundo muçulmano assumem o rosto de pessoas amigas que dia a dia têm aprendido a se estimar e a se amar, a paz está assegurada, porque são dissolvidos os espectros da desconfiança, do medo, da rivalidade. E no encontro cotidiano, no mistério da visitação, é onde se vai construindo a paz.” 
Irmã Maria Ana garante que se sente muito tranquila e segura quando precisa sair do Mosteiro. “O Marrocos tem especial cuidado com os estrangeiros, e conosco, religiosas, há uma atenção ímpar. Os policiais são extremamente cordiais conosco. As rodovias, por exemplo, são muito vigiadas por conta de toda a problemática dos imigrantes, do terrorismo etc.”
 

Migrantes

A recente crise migratória mundial é bastante sentida no Marrocos. De porta de entrada para o Norte da África, Tanger tem se tornado uma rota de saída. A Missionária recordou os milhares de africanos subsaarianos que desejam entrar no continente europeu, principalmente na Espanha, tentando atravessar o Mediterrâneo clandestinamente. “Como existe um acordo da comunidade europeia com o Marrocos para barrá-los, a situação deles torna-se bastante precária. São os pobres aos quais nossa Igreja é chamada a servir”, salientou Irmã Maria Ana.
 

Presença

“Uma presença orante em meio a um povo orante”. Assim as carmelitas definem sua missão em Tanger. Irmã Maria Ana chamou a atenção para características do povo muçulmano que a impressionaram. “Eles referem tudo a Deus com tanta naturalidade e amor. É lindo, por exemplo, como os pobres te abençoam ao agradecer uma esmola”, relatou. A Monja também se disse impressionada com a vida penitente do povo. “Não tinha ideia de como é o Ramadã. O jejum é de um mês desde que aparece o sol até o entardecer, pouco mais de 12 horas...”. Ela também destacou o quanto se reza durante o dia, caracterizado pelos chamados feitos dos alto-falantes das mesquitas. “Como há centenas de mesquitas, uma muito próxima à outra, ouve-se um eco em toda a cidade, um murmúrio que ao mesmo tempo convoca à oração.”  
Na avaliação do Padre Saverio, “a experiência que nossas irmãs fazem aqui, nesta terra, onde não têm senão sua fé e sua vocação, contém em si a graça do deserto: perder tudo e ter a única coisa necessária, o que por si só é suficiente. Os que têm feito a experiência de Deus, muçulmanos ou cristãos, ou qual seja sua religião, sabem que só há uma coisa que pode satisfazer o coração humano: Deus”, disse na já referida celebração de 2014, recordando, ainda, a célebre frase de Santa Teresa de Ávila, fundadora do Carmelo Descalço: “Só Deus basta!” 
 

Testemunho

Os religiosos em maior número na Igreja no Marrocos são os Franciscanos, estabelecidos no país desde os tempos de São Francisco de Assis, no século XIII. Os institutos de vida consagrada femininos são mais de 20. Além do Carmelo, há duas comunidades monásticas: os Trapistas em Midelt e as Clarissas em Casablanca.
 
Há também leigos missionários que se dedicam em obras caritativas da Igreja por um tempo específico como voluntários. 
Na última assembleia da Conferência Episcopal do Norte da África (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia), realizada em abril, no Carmelo de Tanger, as monjas puderam tocar de perto a realidade e o sofrimento desses cristãos por conta da instabilidade política de seus países. “Os bispos da Líbia, por exemplo, não participaram, um por motivo de saúde, outro porque não podia sair de sua residência por falta de segurança”, conta Irmã Maria Ana. A Líbia é um dos países que sofre com a presença de grupos radicais como o Estado Islâmico. 
 
Em 2015, o Papa Francisco recebeu os bispos dessa Conferência para a visita ad limina apostolorum e motivou os missionários a permanecerem firmes nessa região. “Suas orações, o seu sofrimento, que é o seu testemunho de vida, são muito mais importantes do que a palavra que vocês poderão dizer, porque Cristo age não por meio de suas palavras, mas por suas vidas”, afirmou o Pontífice na ocasião. 
 
“Hoje, por conta de tudo o que tenho visto e vivido no Marrocos, eu tenho uma noção melhor do que é a vida consagrada na Igreja, sua importância para a Igreja e a humanidade e de como devemos rezar com insistência, como tem pedido o Papa Francisco, pelas vocações à vida consagrada”, concluiu Irmã Maria Ana. 
 
Reportagem publicada no Jornal O  SÃO PAULO - Edição 3123 - 12 a 18 de Outubro de 2016