Misericórdia e justiça

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31/08/2016 - 12:15
 
O Ano Santo extraordinário da Misericórdia nos ajuda para uma renovada consciência sobre o significado e a prática da misericórdia, que, conforme recorda o Papa Francisco, está no centro de nossa fé, pois Deus é misericordioso; também está no centro da vida eclesial, pois a Igreja é anunciadora, servidora e testemunha da misericórdia de Deus. Mas também está no centro da vida cristã, que deve ser uma resposta coerente a Deus, que é misericordioso.
 
Em muitos momentos, ao longo deste Jubileu extraordinário da Misericórdia, o Papa nos alertou que a misericórdia não é apenas uma ideia nem, muito menos, uma ideologia: é um sentimento, uma prática, uma atitude. Por isso, nem nos preocupamos tanto em definir exatamente o que ela é, mas falamos nas “obras de misericórdia”.
 
Uma questão nem sempre fácil é conciliar misericórdia e justiça. Será que uma exclui a outra? Quando falamos da misericórdia de Deus, afirmamos que Deus é justo e misericordioso e não fica tão difícil conciliar essas duas qualidades no agir divino: porque é justo, Deus também é misericordioso. Nossas ofensas nunca poderiam ser plenamente reparadas por nós mesmos, pois a Majestade ofendida ou ultrajada é maior que a nossa capacidade de reparação.
 
Portanto, Deus perdoa e usa de misericórdia sempre que encontra no homem pecador um mínimo sinal de humildade e reconhecimento da própria falta. Basta ao homem abrir uma brecha de arrependimento no seu coração, e Deus entra com sua misericórdia. O que Deus espera do homem é o arrependimento e a confiança no seu perdão A misericórdia divina supera a medida estreita da justiça e restaura o pecador com o perdão, dando-lhe nova vida. O Papa Francisco trata da relação entre misericórdia e justiça na Bula de Proclamação do JubileuMisericordiae Vultus - O Rosto da Misericórdia.
 
Fica menos fácil conjugar misericórdia e justiça quando se trata do homem. Como falar de misericórdia a quem foi vítima de violência, de ofensas profundas à sua dignidade, de injustiças em relação aos seus direitos fundamentais? É claro que a misericórdia não dispensa a justiça, nem se deve apelar para a misericórdia como álibi para não satisfazer a justiça. Quem foi injusto em relação ao próximo deve reparar a injustiça, arrepender-se do mal feito e pedir o perdão para, depois, pretender a misericórdia.
 
Ao injustiçado cabe perdoar generosamente as ofensas recebidas e usar de misericórdia, indo além da mera justiça. A misericórdia é uma capacidade divina, concedida pela graça de Deus também ao homem, para que seja capaz de perdoar e de usar de misericórdia. Mas quem espera obter misericórdia deve mostrar sincero arrependimento e humildade. Até mesmo a misericórdia de Deus é concedida somente quando o homem se abre para acolhê-la com humildade e arrependimento.
 
Seria a misericórdia incompatível com a verdade? Essa questão parece mais fácil. É verdade que o homem deve sempre se orientar pela verdade e não se negar a aderir a ela, sempre que a encontra. O conhecimento da verdade e o comportamento segundo a verdade são coisas altamente desejáveis, mas nem a todos isso é possível, e a ignorância nem sempre é culposa. As palavras de Jesus na cruz, em relação aos seus algozes, são bem ilustrativas: “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem”. Eles estavam cometendo uma ação extremamente grave, cujo alcance eles, certamente, nem estavam percebendo: estavam matando de maneira cruel e injusta o Filho de Deus que se fez homem; mesmo assim, Jesus foi misericordioso para com eles e os perdoou. E invocou o perdão de Deus Pai para todos os que pecam por ignorância.
 
Aqui, de fato, tocamos o coração do mistério da misericórdia: na cruz, revela-se de maneira mais extrema o coração misericordioso de Deus e o seu desejo de dar a vida eterna a todos, conforme as palavras de Jesus a Nicodemos: “tanto Deus amou o mundo, que lhe entregou seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crer, não pereça, mas tenha a vida. De fato, Deus não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo”. Em outra passagem, lemos ainda: “Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva”.
 
Deus não veio cobrar justiça do homem: quem seria capaz de se justificar diante dele? Deus enviou seu Filho ao mundo para manifestar aos homens sua misericórdia infinita e seu desejo de que todos tenham vida em abundância.
 
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo
 
Artigo publicado no Jornal O SÃO PAULO - Edição 3117 - 31 de agosto a 6 de setembro de 2016