Contemplar e amar a Amazônia: o ‘sonho ecológico’ do Papa Francisco

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Esta é a terceira de uma série com quatro análises sobre Querida Amazônia, documento publicado em Fevereiro
Publicado em: 05/03/2020 - 17:45
Créditos: Redação

Não basta somente “analisar” a Amazônia. É preciso também contemplá-la para poder amá-la. E, amando-a, é possível preservá-la. Essa é a essência do “sonho ecológico” do Papa Francisco, que ele apresenta no terceiro capítulo da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia (QA), fruto da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos, realizada em outubro de 2019.

O Papa Francisco aplica à região amazônica uma noção já defendida na sua Encíclica Laudato si’, de 2015. Se Deus criou tudo o que existe, inclusive a estreita relação do ser humano com a natureza, cuidar da natureza é cuidar do ser humano. Abrir-se para uma “ecologia integral”, que protege tanto a vida humana quanto a Criação, é abrir-se para Deus.

“Libertar os demais de suas escravidões implica, certamente, cuidar do seu ambiente e defendê-lo, e, mais importante ainda, ajudar o coração do homem a se abrir com confiança àquele Deus que não só criou tudo o que existe, mas também nos deu a si mesmo em Jesus Cristo”, afirma o Papa Francisco. “O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar de nossos irmãos e do ambiente que a cada dia Ele nos presenteia” (QA 41).

Em Querida Amazônia, o Papa fala de quatro sonhos para a Amazônia: social, cultural, ecológico e eclesial. Nesta série com quatro análises, O SÃO PAULO apresenta chaves de leitura para essas categorias. Entenda, a seguir, alguns dos principais pontos do aspecto ecológico.

 

APRENDER A CONTEMPLAR
O Papa Francisco insiste que é necessário aprender com os povos nativos da Amazônia e incluí-los em qualquer projeto que se tenha para a região, também do ponto de vista ecológico. Afinal, a preservação da floresta e de suas riquezas só ocorre se acompanhada de uma autêntica admiração pelo que ela representa. 


“Aprendendo dos povos originários, podemos contemplar a Amazônia, e não só para analisá-la, para reconhecer esse mistério precioso que nos supera. Podemos amá-la, e não só utilizá-la, para que o amor desperte um interesse profundo e sincero”, afirma. “E mais, podemos nos sentir intimamente unidos a ela, e não só defendê-la, e, então, a Amazônia se tornará nossa como uma mãe. Porque o mundo não se contempla de fora, mas de dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres” (QA 55).


Admirar a beleza da Amazônia e reconhecer que ela é um projeto de Deus pode levar a uma “conversão interior” que sustentará a defesa daquele ambiente sagrado. “Essa conversão interior é o que poderá nos permitir chorar pela Amazônia e gritar com ela diante do Senhor” (QA 56).

 

DOR DOS POBRES E DA TERRA
Por isso, estão unidos os gritos de sofrimento dos pobres e da terra na Amazônia – gritos que o Papa Francisco compara àqueles do povo judeu, quando rezava a Deus e clamava pelo fim da escravidão no Egito: “É um grito de escravidão e abandono, que clama por liberdade” (QA 52).


Se a Amazônia grita por sua sobrevivência, já não é mais possível adiar decisões importantes, como se nada fosse acontecer, diz o Papa. Anualmente, milhares de espécies de plantas e animais desaparecem, algumas das quais nem sequer conhecidas e catalogadas; a água está cada vez mais contaminada; as periferias das cidades crescem de forma desordenada; a floresta é desmatada sem critérios; as reservas naturais e terras indígenas são exploradas ilegalmente...


E o que tem a Igreja a ver com isso? “Deus Pai, que criou cada ser do universo com infinito amor, nos chama a ser seus instrumentos para escutar o grito da Amazônia. Se acudirmos a esse clamor angustiado, poderá manifestar-se que as criaturas da Amazônia não foram esquecidas pelo Pai do céu” (QA 57). A Amazônia é, portanto, um “lugar teológico, um espaço onde Deus mesmo se mostra e convoca seus filhos” (QA 57).

 

NÃO À INTECCRNACIONALIZAÇÃO
Querida Amazônia convoca toda a humanidade a amar a região amazônica, mas atribui aos mais poderosos uma responsabilidade maior, justamente porque controlam o poder econômico e político. 

Suas decisões e práticas têm impactos decisivos na preservação do ambiente natural e das culturas locais. Por isso, Francisco afirma que é preciso resistir a “vícios autodestrutivos”, como a ideia de que nada precisa ser feito.

Faltam regras claras, um “sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecnoeconômico acabem arrasando não só a política, mas também a liberdade e a justiça” (QA 52).

Com a ajuda da ciência, o Papa reconhece o papel que a Amazônia tem no equilíbrio planetário e no controle das temperaturas. Ele defende que a Amazônia é um bem de toda a humanidade e suas riquezas naturais e culturais pertencem a toda a família humana.

Isso não quer dizer, entretanto, que a Amazônia deva ser internacionalizada. Pelo contrário: Francisco atribui aos governos nacionais e locais da região amazônica o dever de conservá-la e garantir os direitos dos povos. “A solução não está, então, em uma internacionalização da Amazônia, mas a responsabilidade dos governos nacionais torna-se mais grave”, declara. Iniciativas internacionais e da sociedade civil ajudam a sensibilizar a população, “para que cada governo cumpra o dever próprio e não delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais” (QA 50).

 

RESISTIR AO INDIVIDUALISMO
O Papa também convida a todos a adotar um novo estilo de vida, mais respeitoso em relação ao meio ambiente. É preciso, ainda, educar as populações, inclusive na Amazônia, a novos hábitos ecológicos: “A grande ecologia sempre inclui um aspecto educativo, que provoca o desenvolvimento de novos hábitos nas pessoas e nos grupos humanos” (QA 58).


É possível integrar o conhecimento tecnológico existente com as práticas milenares dos indígenas, diz o Papa. “Para cuidar da Amazônia, é bom articular os saberes ancestrais com os conhecimentos técnicos contemporâneos, mas sempre procurando um manejo sustentável do território que ao mesmo tempo preserve o estilo de vida e os sistemas de valores dos habitantes” (QA 51). 


Superando o consumismo e o individualismo, e promovendo um estilo de vida “mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno”, será possível dar mais um passo rumo à “ecologia integral” (QA 58).