As crianças são impedidas de brincar?

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Jornal O SÃO PAULO entrevista a arquiteta e educadora Regina Celi de Albuquerque Machado Steurer sobre o valor da brincadeira no desenvolvimento das crianças
Publicado em: 21/07/2015 - 14:15
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3061

Por Nayá Fernandes

Regina Celi de Albuquerque Machado Steurer é arquiteta, educadora, mãe do João e do Pedro e uma das fundadoras do Projeto Âncora. No Projeto, localizado em Cotia (SP), já foram atendidas mais de seis mil crianças, adolescentes e suas famílias com programas como creche, educação infantil, atividades culturais, artísticas e esportivas e cursos profissionalizantes. Uma das grandes referências é o Circo Teatro Escola Vagalume, lugar do encontro, das festas, espaço aberto à comunidade, a praça da Cidade Âncora. Na entrevista desta semana, O SÃO PAULO conversou com a Regina sobre o valor da brincadeira no desenvolvimento das crianças, e de que maneira pais e educadores podem contribuir para garantir o direito de brincar dos pequenos. Ainda é possível aproveitar a última semana de julho para brincar ainda mais com a garotada.  

Podemos dizer que hoje as crianças têm sido impedidas de brincar?

Regina Machado - Outro dia vi um grupo de crianças de três anos saindo de uma escola para brincar num parque ao lado. Duas educadoras despejaram num piso de concreto uma série de brinquedinhos de plástico e não permitiam que as crianças saíssem dessa pequena área de uns 20 m2. As mais ousadas, que se aventuravam, logo eram capturadas para voltar ao cercado imaginário. Ao redor haviam tantas árvores para subir, pequenos taludes para escorregar, gramados para correr. Mas as crianças não podiam chegar até eles. As educadoras diziam que era perigoso, poderiam cair, se machucar, se sujar. Não sei se eu sentia mais pena das crianças que ousavam desobedecer e eram reprimidas ou daquelas que se contentavam em olhar resignadas aquele paraíso interditado. Os brinquedinhos no chão... ninguém se interessou. As duas educadoras papeavam entre si. A relação delas com as crianças se resumia a cuidar para que não saíssem do quadrado. Ninguém brincava com ninguém.

Que fatores sociais e culturais poderíamos destacar nesse processo?

Um dia, enquanto esperava meu filho de quatro anos na aula de natação, puxei papo com outra mãe. Seu filho está em alguma escola? Sim, ela respondeu, mas lá ele só brinca, no próximo ano vamos colocá-lo numa escola de verdade. Enquanto isso, eu agradecia aos céus ter tido o privilégio de ter meus filhos numa escola com natureza exuberante, onde as crianças só entravam quando chovia. Onde as brincadeiras brotavam da necessidade das crianças, necessidades corporais, emocionais, sociais, culturais. Onde os adultos estavam atentos o tempo todo, repletos de repertório de músicas, danças, brincadeiras e prontos para ajudar as crianças em suas necessidades e desejos. Impedir a brincadeira livre, a possibilidade da criança criar seus brinquedos e brincadeiras e de se aventurar nos espaços e nas relações, impedir a liberdade de escolha e a administração do seu próprio tempo, são mecanismos de controle social. Essa ficha ainda não caiu para muitos pais.

Darcy Ribeiro dizia que a crise na educação não é uma crise, mas um projeto. Penso que nem os pais e nem os educadores têm total noção de que projeto é esse. Mas quando pais e educadores se dão conta, quando acordam, é como se um véu fosse tirado de seus olhos. Eles entendem que a brincadeira é a linguagem natural da criança e que ali elas estão aprendendo as bases da matemática e das ciências, as regras da vida em comunidade, os limites do corpo e da liberdade, suas capacidades e dons. Na brincadeira aprendem a conviver e a respeitar o outro.

O quanto poderíamos responsabilizar a mídia e as novas tecnologias nesse processo de “perda da infancia”?

Tecnologia sempre existiu, quando o ser humano aprendeu a cultivar, desenvolveu tecnologia, quando inventou o arado ou o ferro, criou tecnologia. As novas tecnologias podem estar ou não a serviço da vida. O mesmo para as mídias. Somos nós que decidimos o que usar, como, quando, o que comprar, ler ou assistir. Um dia, num debate entre pais na escola, escutei uma mãe dizendo que ela não conseguia ter domínio sobre a TV. E eu pensei: sobre o fogão, outro equipamento doméstico tal qual a TV, essa mãe tem domínio? Ou seu filho pequeno pode ligar os botões e acender o fogo? Seu filho pode brincar com as facas da cozinha ou com os cristais? Por que os pais não deixam filhos ligarem o carro, o fogão ou enfiar grampos nas tomadas, mas não conseguem colocar limites em relação à TV ou ao computador?

Ainda estou buscando a resposta. Talvez porque os pais também estejam reféns desses aparelhos. Talvez porque presos aos aparelhos, os pais, cansados de tanto trabalho e trânsito, não precisam se dedicar a conversar, brincar, contar histórias, essas coisas que as crianças demandam dos adultos.

Como a família e a escola podem contribuir para o desenvolvimento lúdico e criativo dos filhos?

Quem disse que não há aprendizagem no jogo, na brincadeira, no ócio? Quando meus meninos eram pequenos, um dia, numa atividade da escola, os pais foram convidados a se comprometerem com a educação dos seus filhos. Escrevi num papelzinho e, a mais de uma década, carrego esse papel na minha carteira. Nele escrevi que nos finais de semana e férias me dedicaria aos meninos, que privilegiaria estar com eles ao ar livre, envolvidos com esportes, arte ou cultura. Um compromisso como tantos outros que assumimos. Um compromisso com um filho é um compromisso com o futuro da humanidade. Quando meus meninos eram pequenos, um dia, numa atividade da escola, os pais foram convidados a se comprometerem com a educação dos seus filhos. Escrevi num papelzinho e, a mais de uma década, carrego esse papel na minha carteira. Nele escrevi que nos finais de semana e férias me dedicaria aos meninos, que privilegiaria estar com eles ao ar livre, envolvidos com esportes, arte ou cultura. Um compromisso como tantos outros que assumimos. Um compromisso com um filho é um compromisso com o futuro da humanidade.

Poderia explicar melhor sobre a experiência do Projeto Ancora nesse sentido?

Em 1995 fundamos, eu e meu marido, o Projeto Âncora, eu arquiteta e ele empresário. No fim de 1996 começamos a receber crianças a partir de 1 ano e meio na entidade. Nosso primeiro filho nasceu em 1997 e o segundo em 2001. Até então não entendíamos nada de pedagogia ou cultura da infância. Começamos a oferecer atividades circenses para as crianças do Âncora, e com isso acertamos em cheio. O circo é lúdico por si só, seu espaço circular já é um convite à cooperação, as atividades privilegiam o trabalho coletivo e a disciplina, tudo é uma grande brincadeira, e como tal, muito séria.

Em 1999 conhecemos Maria Amélia Pereira, a Peo, fundadora da Casa Redonda, referência em Educação Infantil e, a partir daí, definimos qual caminho educacional queríamos seguir no Projeto Âncora. Passamos 7 anos frequentando a Casa Redonda diariamente. E quando, há 4 anos, nos tornamos também uma escola de Ensino Fundamental, essa pedagogia continuou a nos inspirar e alimentar.

Diz a Peo que precisamos de educadores inteligentes e sensíveis, que saibam acolher os mistérios da vida que se expressa dentro de cada criança, caso contrário, em nome de uma sociedade pautada na competição e na competência, se anula o sujeito, cria-se um rebanho uniforme, pronto para a aceitação do mercado que irá consumi-lo na corrida por um mundo dessacralizado porque sem sentido.

Acredito que a criança traz dentro de si os recursos para o seu processo de desenvolvimento físico, emocional e mental, que brincar socializa e é o modo privilegiado como a criança se apropria do mundo. A criança que brinca aprende o que é alegria, liberdade e prazer, valores que não abrirão mão durante a vida.

Numa metrópole como São Paulo as brincadeiras de roda mais antigas podem ser totalmente esquecidas. Como você vê isso?

Acho que o problema não é esquecer as brincadeiras de roda, mas não ver que as crianças precisam das brincadeiras de roda, brincadeiras de corpo, precisam correr, empurrar, puxar, precisam brincar ao ar livre, subir e descer de árvores e taludes, escorregar e pular, precisam cantar e dançar, todas essas coisas impossíveis de fazer dentro de quatro paredes que mais se parecem com mini prisões, onde o professor vira carcereiro e recreio mais se parece com o banho de sol e a sala a cela.