Dignidade e não esmola

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O Papa denunciou o paradoxo da abundância e a falta de solidariedade, livres de pressões políticas e econômicas para evitar que a criação se autodestrua
Publicado em: 27/11/2014 - 17:45
Créditos: Edição nº 48 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – páginas 2 e 3

“Quando se fala de novos direitos, o faminto está ali, na esquina da rua, e pede o direito de cidadania”: não pede “esmola”, mas “dignidade”. Foi a forte exortação que o Papa Francisco dirigiu, na quinta-feira 20 de Novembro, à segunda Conferência internacional sobre a alimentação que teve lugar na sede da Fao em Roma. No seu discurso pronunciado em língua espanhola o Pontífice convidou os Estados a enfrentar dois desafios: o “paradoxo da abundância” e a “falta de solidariedade”.

Senhor Presidente

Senhoras e Senhores!

Com sentimentos de respeito e apreço apresento-me hoje aqui, na Segunda Conferência Internacional sobre a Alimentação. Agradeço-lhe, senhor Presidente, o caloroso acolhimento e as palavras de boas-vindas. Saúdo cordialmente o Diretor-Geral da Fao, professor José Graziano da Silva, e a Diretora-Geral da OMS, Dra Margaret Chan, e alegro-me pela vossa decisão de reunir nesta Conferência representantes de Estados, instituições internacionais, organizações da sociedade civil, do mundo da agricultura e do sector privado, para estudar juntos as formas de intervenção para garantir a alimentação, assim como as mudanças necessárias que devem ser feitas às atuais estratégias. A unidade global de propósitos e ações, mas, sobretudo o espírito de irmandade, podem ser decisivos para soluções adequadas. A Igreja, como sabeis, procura estar sempre atenta e ser solícita em relação a tudo o que se refere ao bem-estar espiritual e material das pessoas, em primeiro lugar de quantos vivem marginalizados e são excluídos, para que sejam garantidas a sua segurança e dignidade.

Os destinos de cada nação estão mais do que nunca relacionados entre si, como os membros de uma mesma família, que dependem uns dos outros. Mas vivemos numa época na qual as relações entre as nações são demasiadas vezes deterioradas pela suspeita recíproca, que por vezes se transforma em maneiras de agressão bélica e econômica, mina a amizade entre irmãos e rejeita ou descarta quem já está excluído. Sabe isto muito bem quem não tem o pão diário nem um trabalho digno. É este o quadro mundial, no qual se devem reconhecer os limites de organizações que se baseiam na soberania de cada um dos Estados, entendida como absoluta, e nos interesses nacionais, muitas vezes condicionados por pequenos grupos de poder. Explica bem isto a leitura da vossa agenda de trabalho que se propõe elaborar novas normas, novas formas e mais compromissos para alimentar o mundo. Nesta perspectiva espero que, na formulação de tais compromissos os Estados se inspirem na convicção de que o direito à alimentação só será garantido se nos preocuparmos com o seu protagonista real, ou seja, a pessoa que sofre os efeitos da fome e da subalimentação. O sujeito real!

Hoje se fala muito de direitos, esquecendo com muita frequência os deveres; talvez nos tenhamos preocupado demasiado pouco por quantos sofrem a fome. Além disso, é doloroso constatar que a luta contra a fome e a subalimentação é obstada pela “prioridade de mercado”, e pela “primazia do lucro”, que reduziram os alimentos a uma mercadoria qualquer, sujeita a especulações, até financeiras. E quando se fala de novos direitos, o faminto está ali, na esquina da rua, e pede o direito de cidadania, pede para ser considerado na sua condição, para receber uma alimentação básica sadia. Pede-nos dignidade, não esmola.

Estes critérios não podem permanecer no limbo da teoria. As pessoas e os povos exigem que se ponha em prática a justiça; não só a justiça legal, mas também a contributiva e distributiva. Por conseguinte, os planos de desenvolvimento e o trabalho das organizações internacionais deveriam ter em consideração o desejo, tão frequente entre o povo comum, de ver respeitados em todas as circunstâncias os direitos fundamentais da pessoa humana e, no nosso caso, da pessoa que tem fome. Quando isto acontecer, também as intervenções humanitárias, as ações urgentes de ajuda e de desenvolvimento – o verdadeiro, integral – terão maior impulso e darão os frutos desejados.

O interesse pela produção, a disponibilidade de alimentos e o acesso a eles, a mudança climática e o comércio agrícola devem indubitavelmente inspirar as regras e as medidas técnicas, mas a primeira preocupação deve ser a própria pessoa, quantos não têm o alimento diário e  deixaram de pensar na vida, nas relações familiares e sociais, e lutam unicamente pela sobrevivência. Em 1992, o Santo Padre João Paulo II, na inauguração, nesta sala, da Primeira Conferência sobre a Alimentação, advertiu a comunidade internacional contra o risco do “paradoxo da abundância”: há alimento para todos, mas nem todos podem comer, enquanto o desperdício, o descarte, o consumo excessivo e o uso de alimentos para outros fins estão diante dos nossos olhos. Eis o paradoxo! Infelizmente, este “paradoxo” continua a ser actual. Há poucos temas sobre os quais se exibem tantos sofismas como a fome; e poucos argumentos tão susceptíveis de ser manipulados pelos dados, pelas estatísticas, pelas exigências de segurança nacional, pela corrupção ou por uma chamada dolorosa à crise econômica. É este o primeiro desafio que deve ser superado.

O segundo desafio que deve ser enfrentado é a falta de solidariedade. Uma palavra que inconscientemente temos a suspeita de ter que eliminar do dicionário. As nossas sociedades caracterizam-se por um individualismo crescente e pela divisão; isto acaba por privar os mais débeis de uma vida digna e por provocar revoltas contra as instituições. Quando num país não há solidariedade, todos ressentem disto. De fato, a solidariedade é a atitude que faz com que  as pessoas sejam capazes de ir ao encontro do outro e fundar as próprias relações recíprocas naquele sentimento de fraternidade que vai além das diferenças e dos limites, e leva a procurar juntos o bem comum.

Os seres humanos, na medida em que tomam consciência de ser parte responsável do desígnio da criação, tornam-se capazes de se respeitar reciprocamente, em vez de combater entre si, danificando e empobrecendo o planeta. Também aos Estados, concebidos como comunidade de pessoas e povos, é pedido que ajam de comum acordo, que estejam dispostos a ajudar-se uns aos outros mediante os princípios e as normas que o direito internacional lhes põe à disposição. Uma fonte inexaurível de inspiração é a lei natural, inscrita no coração humano, que fala uma linguagem que todos podem compreender: amor, justiça, paz, elementos inseparáveis entre si. Como as pessoas, também os Estados e as instituições internacionais estão chamados a acolher e cultivar estes valores, num espírito de diálogo e de escuta recíproca. Deste modo, o objetivo de alimentar a família humana torna- se realizável.

Cada mulher, homem, criança ou idoso deve poder contar com estas garantias em toda a parte. E é um dever de cada Estado, atento ao bem-estar dos seus cidadãos, subscrevê-las sem reservas e preocupar-se com a sua aplicação. Isto exige perseverança e apoio. A Igreja católica procura oferecer também neste âmbito o próprio contributo, mediante uma atenção constante à vida dos pobres, dos necessitados em todas as partes do planeta; move-se nesta mesma linha o compromisso ativo da Santa Sé nas organizações internacionais e com os seus numerosos documentos e declarações. Desta forma pretende-se contribuir para a identificação e a adoção de critérios que o desenvolvimento de um sistema internacional equitativo deve satisfazer.  São critérios que, a nível ético, se baseiam em pilares como a verdade, a liberdade, a justiça e a solidariedade;  ao mesmo tempo, em âmbito jurídico, estes mesmos critérios  incluem a relação entre o direito à alimentação e o direito à vida e a uma existência digna, o direito de ser tutelado pela lei, nem sempre próxima da realidade de quem sofre  a fome, e a obrigação moral de partilhar a riqueza econômica do mundo.

Se acredita no princípio da unidade da família humana, fundado na paternidade de Deus Criador e na fraternidade dos seres humanos, nenhuma forma de pressão política ou econômica que se sirva da disponibilidade de alimentos pode ser aceitável. Pressão política e econômica.  Penso na nossa irmã e mãe terra, no Planeta. Se estivermos livres de pressões políticas e econômicas para o  preservar, para evitar que se autodestrua.Temos à nossa frente o Peru e  a França, duas conferências que nos lançam um desafio. Preservar o Planeta. Recordo uma frase que ouvi de um idoso, há muitos anos: “Deus perdoa sempre, as ofensas, os abusos; Deus perdoa sempre. Os homens perdoam de vez em quando. A terra nunca perdoa!”. Preservemos a irmã terra, a mãe terra, para que não responda com a destruição. Mas sobretudo, nenhum sistema de discriminação, de fato ou de direito, vinculado à capacidade de acesso ao mercado de alimentos, deve ser tomado como modelo das ações internacionais que se propõem eliminar a fome. Ao partilhar convosco estas reflexões, peço ao Onipotente, ao Deus rico de misericórdia, que abençoe quantos, com responsabilidades diversas, se põem ao serviço  de quem sofre a fome e sabem assisti-los com gestos concretos de proximidade. Rezo também para que a comunidade internacional saiba ouvir o apelo desta Conferência e o  considere uma expressão da comum consciência da humanidade: dar de comer aos famintos para salvar a vida no planeta. Obrigado.