Genocídio Armênio: o primeiro do século XX

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Após cem anos, o povo armênio não teve o reconhecimento do genocídio, que exterminou 1 milhão e 500 mil pessoas, pelo então Império Otomano, atual Turquia
Publicado em: 08/05/2015 - 16:30
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3048

Por Nayá Fernandes

Para alguns, passar pela avenida Tiradentes, próximo da estação de metrô Armênia ou pela rua Comendador Afonso Kherlakian, pode ser uma experiência diferente a partir da leitura desta reportagem. Os dois endereços na cidade de São Paulo carregam a história do povo Armênio, que sofreu o primeiro genocídio do século XX, com 1 milhão e 500 mil mortos e ainda está à espera de um reconhecimento.

Na avenida Tiradentes encontra-se o “Memorial das Vítimas do Genocídio Armênio de 1915” inaugurado no dia 24 de abril de 1966. O Comendador Afonso Khelarkian é irmão de Carlos Khelarkian, último e único de sete irmãos nascido em São Paulo, quando seus pais migraram para o Brasil, fugindo da perseguição sofrida a partir de 1915 pelo Império Otomano, atual Turquia.

Os cristãos armênios preparavam-se para celebrar a Páscoa, no dia 24 de abril de 1915, quando receberam ordens de deixar suas casas em 24 horas. O governo dos Jovens Turcos começou a perseguição a líderes religiosos, políticos, intelectuais e artistas na atual cidade de Istambul e mais de 800 pessoas foram deportadas e mortas.

A partir de então, caravanas com homens, mulheres e crianças começaram a deixar suas cidades e andar pelo deserto em direção à Aleppo e Beirute. Muitos morriam pelo caminho, mas a maioria dos que conseguiam chegar era desviada para a cidade síria de Deir-el-Zor, comparada à Auschwitz, símbolo do holocausto, genocídio que aconteceu também no século XX.

Com a história nas mãos

“Ainda estão lá. As casas, a cultura do povo armênio, o monte Ararat, sob o domínio turco”, lamentou Carlos Kherlakian, 84, que veio para a entrevista carregando consigo um quadro do avô, parlamentar que conseguiu salvar a família e cerca de 500 mil armênios, graças à intervenção de forças internacionais.

Carlos seguiu os passos do avô e também foi parlamentar no Estado de São Paulo. Assim, em uma de suas viagens a trabalho, ele conheceu a esposa, que cantava num coral armênio, durante o Congresso Eucarístico Internacional do Rio de Janeiro, em 1955.

Os pais de Hatuna Kherlakian, falecida há 15 anos, nasceram na mesma cidade que os pais de Carlos e juntos tiveram três filhos: Carlos Alberto, também falecido, Márcia e Denise. Elegante, de terno e gravata e com voz forte, Carlos fez questão de enfatizar sua nacionalidade brasileira, ao mesmo tempo em que recorda o quanto os armênios, sírios e libaneses colaboraram com o crescimento da cidade, pois na capital paulista, a coletividade sírio-libanesa cresceu e dominou o comércio, sobretudo nos arredores da rua 25 de março.

“Quando meu pai veio para o Brasil, em 1922 e, logo depois, trouxe a esposa e os filhos, em 1925, começou uma indústria de calçados, mas não teve sucesso. Então, passou a trabalhar transportando mercadoria para o interior do Estado e fez isso durante oito anos, até que conseguiu reabrir seu negócio”, contou Carlos.

O tio desse brasileiro que vibra ao contar as histórias do seu povo foi major do exército turco, Setrak Kherlarkian, mas ajudou seu povo em diversos momentos de dificuldade até ser ele também degolado. “As mortes eram muitos cruéis. Os armênios eram crucificados, degolados, empalados. As mulheres grávidas eram espetadas e do ventre se tiravam as crianças”, relatou.

O descendente de um massacre que continua ignorado nos livros de história confirmou que o genocídio começou silencioso. “Só passaram a perceber as mortes coletivas quando sentiram a falta das caravanas que partiam, e se deram conta que estavam sendo encaminhados para a morte. Muitos testemunham que o rio Eufrates ficou banhado de sangue. Contudo, por mais que persigam os armênios, por onde passar a tribo armênia, lá fica uma pequena centelha que germina, cresce e forma uma comunidade. Nós não morremos.”

Em 1977, o primeiro filho da família Kherlakian nascido no Brasil fez parte de uma comissão do Conselho da Comunidade Armênia de São Paulo, que junto às autoridades de outros países latino-americanos pretendeu levar um pedido de reconhecimento até a Organização das Nações Unidas (ONU) e chegou a falar com o então presidente da República, Médici, à época no governo militar. “Queríamos, e ainda queremos, uma retratação moral e social, não material”, disse.

Porém, a missão acabou sendo abortada, pois nos mesmos dias em que estavam em Brasília para ter o apoio do governo brasileiro, autoridades turcas vieram ao País com a suposta negociação de compra de café, que, segundo informações do senhor Carlos, não aconteceu.

Sinônimo de cristão

O artigo 301 do Código Penal Turco pune com prisão àqueles que ofenderem os valores da nação e, coincidentemente, é este número o mesmo ano em que a Armênia tornou-se cristã, a primeira nação do mundo. Eles também foram os primeiros a esconder-se nas catacumbas fugindo da perseguição romana aos que seguiam Jesus, o Nazareno e, ainda, os primeiros a rezar a missa na própria língua, com anuência do Vaticano.

Segundo as palavras de Dom Vartan Waldir Boghossian, “armênio é sinônimo de cristão”. Nascido em Penápolis (SP), Valdir é o nome civil do salesiano, eparca na Argentina e exarca da Igreja Católica Armênia no Brasil. Emocionado, ele falou da sua identidade brasileira e armênia, pois seus avós, da Armênia migraram para o Líbano, antes de 1915.

“Desde pequeno, me interessei pela cultura armênia e, quando o Papa me chamou para assumir esta missão, escolhi Vartan, pois era o nome mais parecido com meu nome civil, além de representar a defesa da fé e da cultura deste povo”, disse o Exarca, que faz parte da comissão eclesiástica do centenário e tem o objetivo de projetar a realidade do genocídio às comunidades católicas de toda a América Latina.

Sob a imagem de Maria, mãe de Deus, como é invocada pelos armênios, Dom Vartan falou sobre a união de esforços para que o genocídio seja reconhecido. Lembrou São Gregório, o iluminador do povo armênio no século II da era cristã e de outro Gregório, o de Narek, proclamado, recentemente, doutor da Igreja pelo Papa Francisco.

O patriarca pai e cabeça da Igreja Armênica fica em Beirute, no Líbano. Em plena comunhão com o Papa, as igrejas de direito próprio têm a variedade do rito, da espiritualidade e da disciplina. “Não somos um rito da Igreja Católica, somos uma Igreja que compõe a Igreja Católica”, explicou Dom Vartan.

Com a cruz na mão, elemento essencial da espiritualidade armênia, ele caminhou pela igreja que fica na avenida Tiradentes e falou sobre a pedra da qual todas as cruzes das igrejas são feitas. “É a mesma com a qual foram construídas as casas dos armênios. Assim, há a recordação do sofrimento, mas é um sinal de resistência e esperança”, acrescentou, ao insistir que o povo armênio não conserva ódio, mas não dispensa a justiça. O Exarca falou, ainda, sobre outros pilares da espiritualidade armênia como a liturgia das horas, a devoção a Nossa Senhora e a oração constante pelos antepassados.

Dom Vartan contou que o Papa Francisco, ainda Cardeal Bergoglio, em Buenos Aires, demonstrou o desejo de ser enterrado próximo ao altar lateral de São José, da Catedral Metropolitana de Buenos Aires, onde está uma cruz armênia, em memória dos mártires do genocídio.

Em um gesto que comoveu e chamou atenção para o centenário, o Pontífice, na Basílica de São Pedro, no dia 12, durante a missa para os fiéis de Rito Armênio, declarou que, no século passado, a humanidade viveu três grandes e inauditas tragédias. “A primeira, que geralmente é considerada como ‘o primeiro genocídio do século XX’, atingiu o vosso povo armênio, a primeira nação cristã, juntamente com os sírios católicos e ortodoxos, os assírios, os caldeus e os gregos. As outras duas são as perpetradas pelo nazismo e pelo estalinismo.”

Francisco recebeu os patriarcas armênios em Roma e lembrou outros extermínios, como os do Camboja, de Ruanda, de Burundi, e da Bósnia. “Parece que a família humana se recusa a aprender com os seus próprios erros causados pela lei do terror; e, assim, ainda hoje há quem procure eliminar os seus semelhantes, com a ajuda de alguns e o silêncio cúmplice de outros que permanecem espectadores. Esconder ou negar o mal é como deixar que uma ferida continue a sangrar sem a tratar.”

2015, cem anos de silêncio

O que Vladimir Kramnik, campeão mundial de xadrez, Zhores Alferov, prêmio nobel em Física, Steve Wozniak, cofundador da Apple e Hasan Cemal, neto de Djemal Pasha, perpetrador do genocídio têm em comum? Eles reconheceram o genocídio armênio. Além da Turquia, muitos países ainda não o fizeram, entre eles, o Brasil.

O último país a fazê-lo, no dia 21, foi a Alemanha, aliada dos turcos na guerra. A declaração do Papa Francisco, no dia 12, causou controvérsias e o governo turco continua a insistir que não houve genocídio, nega o número de 1,5 milhão de mortos e afirma que os únicos mortos foram os que lutaram nos exércitos turcos durante a guerra ou que caíram durante as fugas nas caravanas.

Enquanto discursava para seus comandantes militares em Obersalzburg, uma semana antes da invasão da Polônia e o começo da Segunda Guerra Mundial, Adolf Hitler falou de suas ordens “de matar sem piedade ou misericórdia todos os homens, mulheres e crianças de raça ou idioma polonês” e concluiu seu comentário dizendo: “Quem, hoje em dia, ainda fala sobre o extermínio dos armênios?”.

Após a independência da União Soviética, a Armênia tem um território com cerca de 20 mil km, mas até mesmo o monte Ararat ficou do lado da Turquia. Hoje são 8 milhões no mundo, metade da população está na Armênia e o restante na diáspora. A maior parte na própria Rússia, devido à língua e à não necessidade de passaporte; em segundo lugar vem os Estados Unidos, seguido da França e, na América Latina, da Argentina e do Brasil.

Dom Vartan explicou que até hoje não se conseguiu um reconhecimento internacional por questões políticas. “A Turquia é a sucessora do Império Otomano e os Estados Unidos da América nunca aceitaram, pois se fizerem qualquer aceno em relação a isso, a Turquia grita. Os interesses políticos estão falando mais alto.” Parlamentos de vários países europeus adotaram leis que criminalizam a negação do genocídio. A Turquia, no entanto, continua a negar.

Em toda a América Latina, Igrejas têm unido forças aos armênios, na sexta-feira, 8 de maio, às 19h, haverá uma missa na Catedral da Sé, em 2 de agosto, às 8h, vai ser encerrada a programação no Brasil do centenário, com missa no Santuário Nacional de Aparecida (SP).