Igreja na Amazônia deve ter um ‘rosto amazônico’ e um ‘clero autóctone’

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Dom Cláudio, antes de embarcar para Belém, falou com exclusividade ao O SÃO PAULO sobre a realidade e desafios da Igreja na Amazônia.
Publicado em: 18/08/2016 - 13:30
Créditos: Fernando Geronazzo

Enviado do Papa Francisco para o XVII Congresso Eucarístico Nacional que começou segunda-feira, 15, em Belém (PA), o Cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, é o porta-voz da atenção pastoral do Santo Padre pela Igreja na Amazô- nia missionária, para que assuma um “rosto amazônico” e “não tenha medo de arriscar perante os grandes problemas de evangelização e desenvolvimento da região”. Presidente da Comissão Episcopal para Amazônia, da CNBB, e da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), Dom Cláudio, antes de embarcar para Belém, falou com exclusividade ao O SÃO PAULO sobre a realidade e desafios da Igreja na Amazônia onde tem visitado com frequência desde 2011. Ele destacou a importância da formação de um clero autóctone e de missionários junto aos indígenas frente ao crescimento de seitas protestantes neopentecostais. Também salientou os problemas inerentes à crescente urbanização da região, que gera “pobreza, com periferias inchadas e abandonadas pelo poder público”. Esta é a segunda vez que o Cardeal Hummes representa um pontífice em um Congresso Eucarístico Nacional. Em 2010, ele foi enviado pelo Papa Bento XVI para a edição anterior do evento, em Brasília (DF). Confira a entrevista.

O SÃO PAULO – Na última assembleia da CNBB, o senhor enfatizou a necessidade de um “rosto amazônico” da Igreja. Qual seria esse rosto?

Cardeal Cláudio Hummes – Foi o Papa Francisco que, em seu discurso aos bispos brasileiros, durante a JMJ no Rio, em 2013, disse que a Igreja na Amazônia deve ter um “rosto amazônico” e um “clero autóctone”, isto é, clero nascido na região. Entendo que o Papa quer uma Igreja que, em sua evangelização, se envolva realmente com a cultura, a história, os problemas, os sonhos e os projetos do povo amazônico, incluindo de modo particular o universo dos povos indígenas, que são os povos originários da região. A formação de um “clero autóctone” faz parte necessária deste processo.

Hoje é possível falar nesse clero autóctone?

Hoje, há algumas poucas arquidioceses e dioceses na Amazônia que já têm considerável número de clero autóctone. As demais, bem menos ou nenhum. Não tenho estatísticas, mas creio que somando todo o clero da Amazônia a grande maioria é de missionários vindos seja de outras dioceses do Brasil seja do exterior. Clero autóctone continua sendo um grande desafio. Se considerarmos a evangelização específica dos índios, padres indígenas infelizmente quase não há. Mas serão necessários, se quisermos realmente promover o direito dos indígenas de voltarem a ser sujeitos de sua história.

Como é o trabalho de evangelização junto aos povos indígenas?

Os indígenas da região que chegaram a ser contatados pelos missionários e missionárias no passado, se converteram ao catolicismo. E foram muitos. Hoje, podemos constatar uma nova situação. Trata-se do fato que muitos deles e até mesmo aldeias inteiras migram da Igreja Católica para Igrejas e seitas protestantes neopentecostais, devido à intensa atividade destes grupos religiosos e por falta de presença maior de nossos pastores junto às aldeias. Precisamos de muito mais presença constante de nossos padres junto às comunidades indígenas católicas. Mas os missionários nossos são muito poucos. Além da pressão dos neopentecostais, temos que reconhecer que apesar do grande esforço de nossos missionários, as comunidades indígenas e também as dos ribeirinhos e de outros na área interiorana, só raramente podem participar da Eucaristia, receber o Sacramento da Reconciliação e a Unção dos Enfermos. Como pode uma comunidade católica florescer se faltam quase totalmente estes três sacramentos fundamentais do cotidiano dos católicos, somado à ausência física quase constante dos seus pastores? A Igreja precisa refletir seriamente sobre isso.

Há também inúmeras realidades sociais desafiadoras na Amazônia. Quais o senhor destaca?

Sim; podemos destacar primeiro a intensa urbanização da região, com todos os seus problemas inerentes para os que migram para as cidades, a saber, migração desorganizada, pouca ou nenhuma estrutura urbana para recebê -los, consequente pobreza, com periferias inchadas e abandonadas pelo poder público. Assim a Igreja na cidade enfrenta novos e complexos desafios para a evangelização urbana, além dos desafios da evangelização da popula- ção interiorana, ribeirinha e indígena. Depois, há o grande problema do desmatamento para favorecer o agronegó- cio, que reina soberano, e a mineração. Ambos quase sempre devastam para acumular lucros, mesmo que seja às custas da população local e da natureza. Outro desafio são os projetos do governo federal de construir dezenas de novas hidrelétricas que, a seu modo, devastam natureza e populações.

Como tem sido o trabalho da Rede Eclesial Pan-Amazônica para enfrentar os desafios da Igreja na Amazônia Legal?

É bom lembrar que além da Rede Eclesial Pan-amazônica existe a Comissão Episcopal para a Amazônia. Esta última já existe há mais de uma década e pertence à CNBB. A REPAM foi criada em 2014 e é do Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM), porque engloba 9 países latino-americanos, mas a Comissão de Bispos para a Amazônia é co-fundadora e membro da REPAM, junto com a Conferência Latino Americana dos Religiosos (CLAR), as Cá- ritas Latino-americanas e o Departamento de Solidariedade e Justiça do CELAM. De ambas, por ora, sou presidente. As duas entidades atuam autonomamente, mas muito conectadas. Ambas têm seus programas pró- prios. É um grande trabalho em favor da Amazônia nos nove países, em favor da preservação e desenvolvimento, bem como de uma evangelização inculturada, com “rosto amazônico” e “formação de clero autóctone”. Uma das formas de dinamizar estes programas são minhas visitas às (arqui) dioceses e prelazias da Amazônia Legal do Brasil. Já visitei 36, com visitas de três a quatro dias, com encontros, palestras, celebrações com o povo local, visitas a aldeias indígenas e assim por diante. Agora, estou também iniciando, como presidente da REPAM, visitas aos outros oito países que tem parcelas da região amazônica, mas estas visitas serão às conferências episcopais de cada país e não a todas as dioceses. Já visitei assim a Guiana e está programada ainda para este ano uma visita ao Equador. 

Qual mensagem do Para Francisco que o senhor leva a Belém?

Como sabemos, o Papa Francisco manifesta um grande amor e zelo pastoral pela Igreja na Amazônia, incentiva uma nova evangelização missionária, que assuma um “rosto amazônico” e inclua toda a problemática da preservação da natureza e meio-ambiente, cultive as vocações missionárias necessárias, não tenha medo de arriscar perante os grandes problemas de evangelização e desenvolvimento da região e tenha como prioridade os pobres, os excluídos, os indígenas, no sentido de uma Igreja missionária, misericordiosa, pobre e para os pobres.

Publicado no Jornal O SÃO PAULO / Edição: 3115 /17 a 23 de agosto de 2016