Igreja trabalha pela reconciliação entre as duas Coreias

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No começo deste mês, o Arcebispo de São Paulo esteve em Seul e participou do fórum internacional para a partilha sobre a paz
Publicado em: 16/11/2017 - 10:00
Créditos: Redação
Arquivo Pessoal

De volta ao Brasil após participar do Fórum Internacional para a Partilha sobre a Paz, promovido entre os dias 3 e 7, pela Arquidiocese de Seul, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo Metropolitano, concedeu entrevista ao O SÃO PAULO a respeito dos propósitos do evento e sobre a realidade da Igreja na Península da Coreia. Leia a seguir a íntegra da entrevista. 

 

O SÃO PAULO - O FÓRUM PARA A PARTILHA SOBRE A PAZ FOI PROMOVIDO PELA ARQUIDIOCESE DE SEUL, NA COREIA DO SUL, DE 3 A 7 DE NOVEMBRO. QUAIS OS MOTIVOS PRINCIPAIS PARA ESSA INICIATIVA?

Cardeal Odilo Pedro Scherer - A iniciativa visou a partilha de experiências sobre a edificação da cultura da paz. Vários convidados, cardeais, bispos e leigos da América Latina falaram sobre a maneira como a Igreja contribuiu, e ainda contribui, para a superação dos conflitos nos diversos países. Dessa maneira, a Arquidiocese de Seul quis promover uma reflexão sobre o papel daquela Igreja local para a superação do conflito entre as duas Coreias e das tensões internacionais presentes naquela parte da Ásia. De fato, existe no povo a percepção do grave risco para a paz, não apenas para a Coreia, mas de um conflito perigoso e destruidor, que poderia envolver vários outros países da região, como o Japão, a China e a Rússia, além dos Estados Unidos. Portanto, a Igreja de Seul, ao tomar essa iniciativa, deseja fomentar a cultura da paz e da reconciliação entre as duas Coreias.

 

O SENHOR PARTICIPOU DESSE FÓRUM E, INCLUSIVE, PROFERIU UMA CONFERÊNCIA. QUAL FOI O MOTIVO DESSE CONVITE E O TEMA DA CONFERÊNCIA?

A cada ano, na promoção do Fórum, são convidados bispos e outras personalidades de um continente diverso para a partilha de iniciativas de paz em seus países. Dessa vez, foram convidadas pessoas da América Latina. Além de mim, estiveram o Cardeal de São Salvador, em El Salvador, Dom Gregorio Rosa Chávez; o Arcebispo de Morelia, no México, Dom Carlos Garfias Merlos; o Ex-Embaixador argentino no Brasil e na Santa Sé, Dr. Vicente Espeche Gil; e o jurista e professor colombiano, Dr. José Gregorio Hernández Galindo. Também participaram dos debates e mesas-redondas vários estudiosos e personalidades públicas locais. Foi um evento muito rico de abordagens e de experiências sobre a contribuição das Igrejas locais para fomentar a paz. Na minha exposição, apresentei, primeiramente, alguns pressupostos que orientam a ação da Igreja em favor da paz, como o próprio conceito bíblico e cristão de paz, a verdade, a justiça, o respeito à dignidade da pessoa e aos direitos humanos, além do perdão e da “purificação da memória”. E partilhei a experiência da Igreja no Brasil na superação do regime militar, do empenho da CNBB e, de maneira especial, do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e de Dom Helder Câmara. O motivo do convite, provavelmente, foi o fato de o Cardeal de Seul e eu participarmos de reuniões na Santa Sé, onde nos conhecemos. Era importante que também a ação da Igreja no Brasil fosse partilhada no Fórum.

 

QUE OUTROS TEMAS FORAM ABORDADOS?

Cada um dos demais convidados partilhou as iniciativas em favor da paz em seus países. O Cardeal de El Salvador falou do testemunho de Dom Oscar Romero; o Arcebispo de Morelia tratou da ação da Igreja na superação da violência decorrente do tráfico de drogas, sobretudo na área fronteiriça com os Estados Unidos; o Ex-Embaixador da Argentina falou do empenho diplomático da Igreja, sobretudo na superação do litígio da Argentina com o Chile sobre a área do Canal de Beagle e da Terra do Fogo; mas falou, também, do êxito favorável no diálogo entre Argentina e Brasil em relação aos projetos nucleares de ambos os países, depois da superação dos respectivos regimes militares. Nas mesas-redondas, com a participação de personalidades locais da Coreia, tratou-se de tirar as consequências das exposições feitas para a situação da própria Coreia. Houve vários momentos de entrevistas para a repercussão do Fórum na opinião pública local.

 

QUEM PARTICIPOU DO FÓRUM E QUAIS FORAM OUTROS MOMENTOS RELEVANTES? 

Além dos convidados para falar e participar dos debates, estiveram presentes bispos, padres, religiosos e diáconos, embaixadores de vários países, estudantes da Faculdade de Teologia, jornalistas e outros interessados. O Fórum possui um comitê permanente, que promove estudos e divulgações sobre os temas ligados ao Fórum. Houve, também, o envolvimento do povo de várias paróquias, onde os cardeais e bispos celebraram. O povo se interessou também em várias iniciativas para se envolver de maneira constante e permanente na cultura da paz e da reconciliação. A Igreja coreana tem a consciência de que, além da esperada superação da divisão, é preciso preparar a sociedade para a acolhida, o diálogo, o perdão e a efetiva consolidação da fraternidade e da paz, que não pode contar com vencidos e vencedores, mas com reconciliados. 

 

TRATOU-SE DE UMA INICIATIVA ISOLADA OU O FÓRUM ESTÁ RELACIONADO COM OUTRAS ATIVIDADES OU INICIATIVAS QUE SE PROPÕEM AO MESMO OBJETIVO?

Não foi uma iniciativa isolada, mas há um comitê permanente, que promove diversas iniciativas ao longo do ano, para o estudo de problemas e para fomentar a cultura da paz. Além disso, na Coreia do Sul, a Igreja promove iniciativas de apoio aos pouquíssimos católicos remanescentes no Norte, que estão sempre em perigo de perseguição e até de martírio; mas também de acolhida e de inserção social daqueles que conseguiram sair do Norte – cristãos ou não. E promove a oração e a penitência em favor da reconciliação e da paz.

 

QUE FRUTOS SÃO ESPERADOS DO FÓRUM?

Naturalmente, espera-se que a Coreia volte a ser um único país; percebe-se que, em geral, custa aos coreanos falar de “duas” Coreias, porque entendem que são um único povo e uma mesma cultura. Sabem que o processo pode ser difícil e longo, mas também têm a certeza de que essa situação não poderá durar para sempre. A maior parte do povo coreano deseja a reunificação, a paz e, sobretudo, a superação do comunismo fechado e desumano do Norte, onde o povo vive sem liberdade e reduzido a massa de manobra do regime totalitário.

 

A IGREJA NA COREIA AINDA É BASTANTE JOVEM, UMA VEZ QUE A FÉ CRISTÃ CHEGOU ÀQUELE PAÍS APENAS EM MEADOS DO SÉCULO XIX. QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DA IGREJA CATÓLICA NA COREIA?

A Igreja na Coreia possui uma história bonita, mas também trágica. O início do Cristianismo na Península Coreana se deveu a alguns leigos estudiosos, que levaram da China a Bíblia e alguns livros sobre a fé cristã para seu País. O estudo e a leitura os levaram à fé cristã e a pedir o Batismo. Chegaram, então, os primeiros missionários, sobretudo franceses. Durante cem anos, os cristãos foram perseguidos e martirizados violentamente. Os mártires das perseguições são mais de 20 mil. Durante os primeiros cem anos, o império coreano e a cultura marcada pelo Confucionismo não aceitaram o fato de os cristãos se negarem a ver no imperador a encarnação da divindade. Portanto, a fé cristã era tida como subversiva e perigosa para a cultura e o sistema social e político. Os cristãos eram perseguidos, presos e torturados e, se permanecessem fieis à sua fé, eram decapitados. Finalmente, com a conversão cristã do último herdeiro do trono, chegou também a liberdade religiosa. Mas, logo viriam novas perseguições, sob o domínio colonial japonês, nos primeiros 50 anos do século XX. Com a implantação do Comunismo na Coreia do Norte, em 1957, as perseguições voltaram e o sangue dos mártires tornou a correr com abundância. Há centenas de causas de beatificação e de canonização em andamento. Outras centenas já foram celebradas, incluindo o primeiro sacerdote coreano – Padre André Kim, junto com seus numerosos companheiros mártires. Hoje, a Igreja Católica na Coreia conta com um pouco mais de 10% da população, algo em torno de 8 milhões de fiéis. Os evangélicos, que chegaram após a 2ª guerra mundial, somam o dobro de fiéis, divididos em numerosos grupos de “Igrejas livres”, de estilo neopentecostal. A Igreja Católica na Coreia do Sul possui 16 dioceses. Há várias dioceses no Norte, mas sem bispo, sem sacerdotes e sem povo, à espera de dias melhores e de liberdade religiosa. Até as igrejas foram destruídas, na sua maioria. A Igreja na Coreia do Sul é fervorosa, rica de vocações e muito ligada aos seus pastores e ao Papa. Nas missas dominicais, a frequência é de cerca de 30% dos fiéis. Numerosos são os missionários já enviados para outros países. Há muitas conversões e batismos de adultos. O Seminário Maior de Seul, que reúne seminaristas de três dioceses, conta com 240 seminaristas e 46 deles já são diáconos.

 

QUAIS SÃO AS MARCAS DEIXADAS POR TANTOS MÁRTIRES DA FÉ NA COREIA?

O testemunho dos mártires está por toda parte e o povo lhes tem grande veneração. Impressiona como, apesar das violentas perseguições e dos martírios, o povo perseverou na fé. Os sacerdotes e bispos tiveram que servir o povo às escondidas, geralmente à noite. Hoje, há numerosos santuários que lembram o lugar do nascimento ou do martírio deles e o povo os frequenta e venera, vindo também de outras partes da Ásia. 

 

DESDE OS PRIMEIROS TEMPOS DO CRISTIANISMO, OS CRISTÃOS ENFRENTAM O MARTÍRIO. TERTULIANO, CÉLEBRE TEÓLOGO DO SÉCULO IV, JÁ DIZIA QUE “O SANGUE DOS MÁRTIRES É SEMENTE DE NOVOS CRISTÃOS”. ISSO SE CONFIRMA MAIS UMA VEZ NA COREIA?

Sim, isso continua se confirmando também naquele País. A esperança é que também a Igreja–mártir da Coreia do Norte possa ressurgir e florescer. Essa esperança está presente nas comunidades do Sul. Em outros países da Ásia, isso também acontece. No Vietnã, sob o regime Comunista fechado, a Igreja foi violentamente perseguida, com numerosos mártires. Hoje, há um grande florescimento da fé, com muitas vocações, apesar de a liberdade religiosa ainda ser restrita.