Nostra Aetate é uma ‘bússola na reconciliação entre cristãos e judeus’

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Cardeal Kurt Koch participou da comemoração dos 50 anos do diálogo católico-judaico, promovido pela Arquidiocese de São Paulo e Confederação Israelita
Publicado em: 03/09/2015 - 15:00
Créditos: Redação

Por Fernando Geronazzo

As comunidades católica e judaica se reuniram na noite desta quarta-feira, 2, no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Tuca), para a cerimônica de comemoração dos 50 anos da Declaração Nostra Aetate (Nossa Época), do Concílio Vaticano II, sobre a Igreja e as religiões não cristãs, que abriu caminhos para o diálogo entre católicos e judeus.

Organizado pela Arquidiocese de São Paulo e a Confederação Israelita do Brasil (Conib) o evento contou com a presença do Cardeal Kurt Koch, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e da Comissão para as Relações Religiosas com os Judeus. Também participaram autoridades civis e religiosas, entre elas, o arcebispo de São Paulo, Cardeal Odilo Pedro Scherer, o presidente da Conib, Fernando Lottenberg, e do Rabino da Congregação Israelita Paulista, Michel Schlesinger.

Logo no início da cerimônia, o ator Odilon Wagner fez a leitura do quarto capítulo da declaração conciliar promulgada pelo Papa Paulo VI em 28 de novembro de 1965. “Sendo assim tão grande o património espiritual comum aos cristãos e aos judeus, este sagrado Concílio quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos fraternos”, diz um trecho do texto.

Declaração atual

O Cardeal Koch iniciou sua conferência destacando que a Declaração Nostra Aetate marca uma importante mudança de orientação no relacionamento entre católicos e judeus. Para ele, a Declaração não perdeu em atualidade, mesmo depois de cinquenta anos, e “serve ainda hoje e no futuro como uma útil bússola na reconciliação entre cristãos e judeus”. Don kurt ressaltou, ainda, que o documento foi aprovado quase no fim do Concílio “com uma votação quase unânime, ou seja com 2221 votos favoráveis, 88 votos contrários e 3 votos nulos”.

Leia a íntegra da conferência do Cardeal Koch

Condenação do antissemitismo

Para o Dom Kurt, é impossível ser, ao mesmo tempo, cristão e antissemita. “Esta mensagem, clara e inconfundível, a qual está sendo reafirmada justamente pelo Papa Francisco num momento em que novamente surgem ondas de antissemitismo, resume na essência o que o Concílio Vaticano II expressa no quarto parágrafo da Declaração Nostra Aetate referindo-se às religiões não-cristãs”.

O Purpurado acrescentou que, neste documento, a Igreja “lamenta os ódios, as perseguições, as manifestações antissemitas, em qualquer tempo e por qualquer pessoa dirigidas contra os Judeus”. “Na Shoah (holocausto) encontramos o ponto mais baixo e terrível daquele antissemitismo primitivo e racista, desenvolvido no século XIX depois de Cristo, e que se tornou uma realidade cruel com a ideologia nazista, a qual foi algo sem Deus, anti-judaico, anti-cristão e neo-pagão”, salientou.

O pecado do anti-judaísmo cristão

“Nesta Declaração – continuou o Cardeal –, as manifestações de ódio, perseguições e antissemitismo não foram descartadas por razões políticas, mas por amor ao Evangelho. Portanto, foram declaradas pecado contra Deus e contra a humanidade”.

Neste aspecto, Dom Kurt afirmou que a Igreja se vê “confrontada com uma grande dívida ou hipoteca”. “Ela [Igreja] quer superar esta dívida enquanto põe numa luz positiva o que, no passado, foi avaliado apenas negativamente”, disse, acrescentando que “mesmo que grande parte dos Judeus não tenha aceitado o Evangelho de Jesus Cristo, eles são ‘amados por Deus por causa de seus pais’.

“Mesmo que as autoridades Judaicas, naquele momento, tenham insistido na morte de Cristo, não se pode acusar todos os Judeus daquele tempo, sem perceber a diferença que há entre os Judeus daquela época e os Judeus de hoje em dia. Mesmo que a Igreja se compreenda como o novo Povo de Deus, não se pode, como cristão, apresentar os Judeus como descartados e amaldiçoados por Deus.

Para Koch, é possível perceber o esforço do Concílio de esclarecer, de forma crítica e construtiva, a história da relação entre Cristianismo e Judaísmo. “Era preciso acolher o fato de que esta história se apresenta de forma complexa, sendo que ela se move, desde o início, entre proximidade e distância, fraternidade e estranheza, amor e ódio. Pois, por um lado, não se entende Jesus sem Israel, a comunidade cristã primitiva participava, obviamente, da liturgia judaica no Templo”.

Herança espiritual comum

“O Concílio visa superar as culpas num horizonte teológico. Ou, de acordo com a Declaração Nostra Aetate: ‘consciente da herança que ela, ou seja, a Igreja tem em comum com os judeus’, afirmou o Cardeal, ressaltando que a grande importância da Declaração consiste na circunstância de que, pela primeira vez na história, um Concílio Ecumênico se pronunciou, de forma tão explícita e positiva, a respeito da relação com os judeus e o judaísmo.

Ainda de acordo com Dom Kurt, para revitalizar a visão bíblica e, sobretudo, a visão paulina no que se refere à relação entre judeus e cristãos, “a Declaração conciliar não destaca apenas as raízes judaicas da fé cristã, mas confirma também, de forma positiva, a ‘herança espiritual comum’ que judeus e cristãos possuem.

“Apenas quando há consciência da herança espiritual em comum, é possível enxergar a razão mais profunda para a nova compreensão das relações católico-judaicas, a qual já aparece na primeira frase do quarto parágrafo da Declaração Nostra Aetate: ‘Ao contemplar o mistério da Igreja, o Santo Sínodo se lembra do laço, pelo qual o povo da Nova Aliança se encontra espiritualmente ligado à descendência de Abraão’”, acrescentou, reforçando que com fundamento histórico-salvífico, “a Declaração Nostra Aetate expressa que a Igreja possui com o Judaísmo um relacionamento único e exclusivo como com nenhuma outra religião”.

Serviço mútuo à fé do outro

Para o Cardeal Koch, cristãos e judeus podem aprender também uns dos outros onde mais profundamente se distinguem. “Sem dúvida, a diferença mais elementar entre o judaísmo e o cristianismo se refere à questão da salvação do mundo e no mundo. Por um lado, a crítica judaica de fundo em relação à confissão cristológica e ao cristianismo em geral insiste na circunstância de que o mundo continua sem reconciliação e de que o Reino de Deus ainda não chegou em nosso mundo. Justamente onde o judaísmo se mantém fiel a sua vocação divina, ele é um espinho na carne do cristianismo, por lembrar a experiência da ainda não-salvação do mundo”.

“Se judaísmo e cristianismo ficarem fiéis as suas respectivas convicções de fé e se respeitarem mutuamente nisso, sendo que assim se desafiam, eles podem prestar este serviço à fé do outro”, frisou o Dom Kurt, explicando que com esta ajuda mútua de serviço à fé, cristianismo e judaísmo, Igreja e Sinagoga “permanecem indissoluvelmente ligadas um ao outro, justamente por cristãos e judeus viverem da mesma herança espiritual”.

Por fim, o Cardeal desejou que a comemoração do cinquentenário da Declaração Nostra Aetate, continue a mostrar o caminho “para que cristãos e judeus se acolham, reciprocamente, numa profunda e interior reconciliação, a fim de que, neste mundo, se tornem um sinal e instrumento de reconciliação e sejam aquela bênção que foi prometida a Abraão, o pai de Israel e o pai da fé dos cristãos”.

O dever de celebrar

O Rabino Michel Schlesinger considera a a celebração do cinquentenário da Nostra Aetate não como uma opção, “mas uma obrigação”. “Temos o dever de comemorar aquilo que foi conquistado nos últimos 50 anos”, disse, ressaltando que o Papa João XXIII, ao inaugurar o Concílio Vaticano II, foi um visionário. “Ele conseguiu transformar dois mil anos de desconfiança e perseguição em 50 anos de respeito, diálogo e compreensão”.

Schlesinger também afirmou que, inspirada pela Declaração conciliar, a comunidade judaica também sentiu um dever que delineasse as relações entre cristãos e judeus. Assinado por mais de 200 rabinos e intelectuais de todas as correntes do judaísmo, o documento Dabru Emet (Digam a verdade) foi publicado pela primeira vez no jornal The New York Times, em 2000. “Este documento afirma, por um lado, a existência de diferenças teológicas importantes entre as duas religiões, mas, por outro, o objetivo do documento é destacar pontos de convergência e legitimar o cristianismo a partir de uma perspectiva judaica”.

Entre os principais pontos tratados pelo texto judaico, o Rabino destacou que Judeus e cristãos acreditam no mesmo Deus. “Nós éramos os únicos monoteístas até a chegada do cristianismo, e a crença em um único Deus deve-nos ser, por si só, um fato de aproximação e respeito”. Outro aspecto é que judeus e cristãos reconhecem a santidade da Bíblia hebraica na qual encontram a origem comum das duas religiões. “Motivo adicional para que encontremos sempre um caminho de diálogo e aproximação”.

O texto judaico também enfatiza que o nazismo não é um fenômeno Cristão, “não é uma consequência inevitável do cristianismo, embora tenha se aproveitado de uma longa história de violência e anti-judaísmo cristãos”.

“Não precisamos concordar em tudo, mas devemos estabelecer que o caminho do respeito irá sempre conduzir as nossas relações. Nossas convicções são apenas parcelas da verdade de Deus e precisamos ver na nossa diversidade algo que nos enriquece, uma oportunidade de nos conhecermos e nos fortalecermos como como indivíduo e como sociedade”, concluiu o Rabino.

Combate ao extremismo

Para o presidente da Conib, Fernando Lottenberg, a cerimônia foi um ponto alto na história do diálogo entre católicos e judeus no Brasil. “A Nostra Aetate estimulou essa aproximação inédita e abriu o campo também para menos de 30 anos depois, o Vaticano estabelecer relações diplomáticas com o Estado de Israel. Nosso trabalho deve prosseguir, levando essa mensagem de entendimento e de paz tanto para a periferia das grandes cidades, como para o interior do nosso país”.

Lottenberg também afirmou que o extremismo religioso supostamente em nome de Deus procura tomar a cena e ocupar espaço em diversas regiões do globo. “Festejar essa Declaração significa, por um lado, rechaçar toda forma de fanatismo e, por outro, reafirmar o compromisso da comunidade judaica brasileira com o pluralismo”.

A chave do diálogo

O Arceispo de São Paulo destacou que o diálogo é uma das principais chaves de compreensão do Vaticano II. “Quis o Concílio que o diálogo orientasse a própria vida interna da própria Igreja, suas relações com as outras igrejas cristãs, com as religiões não-cristãs, em particular com o judaísmo. Mas diálogo também com o mundo, as culturas, a ciência e a Arte. Queria o Papa João XXIII que o diálogo unisse toda a grande família humana e assegurasse o respeito, a justiça e a paz para toda a humanidade”.

Ainda de acordo com o Cardeal Scherer, se ao longo da história, houve períodos marcados por preconceitos, discriminação e até violências nas relações entre cristãos e judeus, “o Concílio apontou para novas atitudes que deveriam orientar os cristãos na sua relação com os judeus” e citou um dos parágrafos da declaração: “A Igreja exorta a seus filhos a que com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração om os seguidores de outras religiões reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como também os valores socioculturais que entre eles se encontram”.

“Em São Paulo, graças a Deus, o diálogo católico-judaico desenvolveu-se de maneira particular através da afirmação e da defesa conjunta da dignidade humana e dos direitos da pessoa em tempos particularmente difíceis da vida nacional, da repressão política”, acrescentou Dom Odilo, recordando as muitas manifestações públicas realizadas durantes esses 50 anos na cidade de São Paulo entre católicos e judeus conjuntamente.

“Demos graças a Deus por todos os que tiveram a coragem de sentar em torno da mesa do diálogo, em vez de se confrontar com armas em punho em trincheiras opostas. Demos graças a Deus, que nos atrai com seu amor de pai e nos quer trazer sempre mais para perto de si, formando uma única grande família de irmãos”, concluiu o Arcebispo.

Comemoração dos 50 anos da Declaração Nostra Aetate, do Concílio Vaticano II (Foto: Luciney Martins)