‘O cyberbullying é mais uma modalidade de violência’

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Confira a íntegra da entrevista de O SÃO PAULO com psicóloga Lidia Pereira Gallindo, especialista no tema de assédio moral
Publicado em: 02/06/2015 - 15:30
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3054

Por Nayá Fernandes

O crime já acontece há muitos anos, mas o Projeto de Lei da Câmara (PL), número 68, de 2013 (PL nº 5.369/2009) foi aprovado pelo Senado Federal somente em março deste ano. Por meio dele se “institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying) em todo o território nacional”.

O PL considera que bullying é a sequência de episódios de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivos, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas, produzindo na vítima prejuízos físicos, morais ou psicológicos.

Já o cyberbullying é uma das modalidades da violência sistemática, e que ocorre por meio das diversas aplicações disponibilizadas na internet. “Trata-se, portanto, de violência moral sistemática no cyberspace, o ambiente virtual da rede global, suportado pelas mais diversas tecnologias de informação e comunicação”, afirmou Lidia Pereira Gallindo, entrevistada pelo O SÃO PAULO para aprofundar o tema.

Lidia é advogada, psicóloga e especialista no tema de assédio moral, tendo escrito, em 2006, o estudo “Assédio Moral nas Instituições de Ensino”, trabalho que defendeu na conclusão do curso de Direito. Ela é também formada em Mediação de Conflitos pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e MBA em Gestão em Direito Educacional pela Escola Paulista de Direito.

Toda e qualquer agressão realizada na internet pode ser considerada cyberbullying?

De posse desse conceito estabelecido, não só pelo Projeto de Lei, mas por todas as outras produções legislativas e bibliográficas, podemos observar que são necessários alguns requisitos para se caracterizar o cyberbullying, bem como todas as outras modalidades de Intimidação Sistemática (bullying). Em tese, poderíamos dizer que o cyberbullying não é toda e qualquer agressão, pois uma agressão isolada não é caracterizadora de assédio moral. Todavia, sabemos do poder da internet em disseminar com rapidez o que nela se veicula, o que faz com que, mesmo não havendo intenção de causar prejuízos físicos, morais e/ou psicológicos à vítima, eles acabam ocorrendo pela escala de veiculação do conteúdo ofensivo e as reações que provoca no meio social da vítima.

Até onde vai a responsabilidade das instituições de ensino e onde começa a da família nestes casos de violência?

A agressão, por vezes, é encarada como uma mera brincadeira, que facilmente passa despercebida. É importante entendermos que a plateia ou testemunhas são todos os atores que estão circunscritos à escola e não somente àqueles que presenciam pontualmente uma agressão e uma “brincadeira” aparentemente despretensiosa. A Lei 14.957/2009, que é do Município de São Paulo, elenca atos de violência física ou psicológica. Entre eles:  provocar situações ou atitudes que levem à exclusão social; subtrair coisa alheia com o intuito de humilhar; promover ou participar de atos de perseguição da vítima; assumir atitudes discriminatórias; praticar atos de amedrontamento; instigar atos de violência, inclusive por meios tecnológicos; dizer que a vítima não serve para nada; referir-se depreciativamente ao local de moradia da vítima, sua aparência pessoal, orientação sexual, opção religiosa, etnia, nível socioeconômico, nacionalidade ou a qualquer outro aspecto que possa colocá-la em situação de inferioridade; espalhar rumores negativos contra a vítima.

Os mecanismos de agressão no ambiente escolar são os mesmos de qualquer outro ambiente social. Se por um lado a civilização foi capaz de avançar tecnologicamente, na outra ponta nos deparamos com comportamentos primitivos e requintes de crueldade no contato com o outro. A epidemia da agressividade, intolerância, preconceitos e inúmeros comportamentos que geram terror e agonia têm levado a sociedade a apreender que este fenômeno a todos alcança, e, portanto, não é privilégio de uma ou outra classe social, de uma ou outra faixa etária. Urge que os mais variados setores da sociedade entrelacem os domínios de conhecimentos e consciência para combater o mal que afeta toda a humanidade.

Não há como lutar contra a violência se não colocarmos o nosso olhar em direção ao outro, o estranho a nós, o estrangeiro. A empatia, simpatia, solidariedade são fundamentais nesse processo. Todos em algum momento somos vítimas, agressores e testemunhas (plateia). A literatura é farta em demonstrar que o agressor um dia foi vítima.  Ambos precisam de cuidados, do olhar do outro, do acolhimento e do entendimento do papel que exerce. E as testemunhas ou plateia?

Relacionar-se não é tarefa fácil e por isso é primordial o aprendizado que possibilita abrir-se generosamente para o outro o que implica o mútuo desejo do bem. Não há relação sem respeito, sem lealdade, sem sinceridade e sem coerência. Estas virtudes não brotam espontaneamente e corroboram com a ideia de que é preciso treiná-las à exaustão.

Este trabalho reforça a necessidade de desenvolvermos as virtudes em nós e naqueles que nos são confiados para que possamos alcançar um meio ambiente equilibrado, no qual o eu, o tu e o nós encontrem a harmonia necessária para o desenvolvimento de uma cultura de paz e seja possível entender, aceitar e conviver com as diferenças. 

Essa é uma questão bastante complexa. Precisamos mudar o paradigma da resolução de conflitos que faz parte da vida em sociedade. A cada dia mais a sociedade está judicializando os seus conflitos e isso significa que estamos cada vez mais atrofiando as habilidades para o diálogo e para restauração das relações tão necessárias para o equilíbrio social. Quando buscamos um responsável, aparentemente resolvemos a questão posta e com isso temos o que vou denominar de alívio psíquico. Se quisermos promover a paz social precisamos restaurar as relações. Para isso precisamos nos apropriar dos círculos restaurativos e da justiça que restaura por meio do perdão, da compreensão do se colocar no lugar do outro de maneira empática. Isso não significa passar a mão na cabeça e tão pouco aderir à impunidade, mas quando o que nos rege é tão somente identificar o responsável não podemos nos apropriar da oração do "Pai nosso", pois nela pedimos para que nossas ofensas sejam perdoadas," assim como perdoamos a quem nos tem ofendido". A responsabilidade é de todos. Todos temos o dever de educar, e educar não é tarefa fácil. A melhor forma de educar é com o exemplo. Podemos nos perguntar, no que tange a violência muitas vezes gratuita, o que tem sido passado de geração em geração. Observemos que o fenômeno do bullying é tão antigo quanto o próprio homem, e nessa direção podemos dizer que bullying é coisa de gente grande e que os pequenos estão replicando.

O legislador foi de extrema felicidade quando determinou na Lei 9.394/1996, LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no seu artigo 32, que o ensino fundamental obrigatório terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Como e quando os educadores podem identificar o cyberbullying? As vítimas mostram comportamento que estão sofrendo o problema?

Muito embora o cyberbullying ocorra em um ambiente extremamente veloz e “sem fronteiras”, não necessariamente as informações chegam na mesma velocidade para os agentes protetores como os pais, escola, familiares e amigos, mesmo porque há ações do bullying que são muito discretas e demasiadamente ameaçadoras. Não podemos descuidar do fato de que a violência sutil e o pacto com o silêncio são formas imperiosas em uma situação de assédio moral.

Apreender o conceito do bullying é de fundamental importância porque nenhum manual dá conta de nomear todos os atos e formas de práticas de violência. Elas se transformam, se multiplicam com uma velocidade e criatividade tal, que nos parece impossível manter uma lista atualizada. Com o conceito apreendido temos a fundamentação necessária e a partir dela o entendimento e a liberdade para fazer analogias e detectar o fenômeno.

A mudança de comportamento é a peça chave de que algo não está a contento. A recusa em ir à escola, crises de choros, ansiedade, sintomas físicos como dor de cabeça, enjoos, dor de barriga. O medo e a angústia diante da utilização do computador e/ou do celular. A vítima tende a se isolar e não mais expressa o desejo de participar de festas, passeios e de atividades em grupo de um modo geral.

É preciso estar atento ao comportamento de algumas vítimas que tentam agradar ao máximo os seus agressores na expectativa de que eles aliviem as “brincadeiras” e toda sorte de maldade e humilhação, bem como vislumbram a possibilidade de serem aceitas pelo grupo agressor, e possivelmente será um deles.

Em uma sociedade líquida como alerta o sociólogo Zigmunt Bauman, perdemos a capacidade de olhar e ver, de escutar e ouvir. Somos tomados por toda sorte de excessos que o dia a dia nos impõe e pouco sobra para nos vincularmos afetivamente com o outro.

A epidemia da agressividade, intolerância, preconceitos e inúmeros comportamentos que geram terror e agonia têm levado a sociedade a apreender que este fenômeno a todos alcança, e, portanto, não é privilégio de uma ou outra classe social, de uma ou outra faixa etária. Parece que urge a necessidade dos mais variados setores da sociedade entrelaçar os domínios de conhecimentos e consciência para combater o mal que afeta toda a humanidade.

Não há como lutar contra a violência se não colocarmos o nosso olhar em direção ao outro, o estranho a nós, o estrangeiro. A empatia, simpatia, solidariedade são fundamentais nesse processo.

As escolas, de modo geral, devem lidar de que maneira com o cyberbullying?

Instruindo, demonstrando, exemplificando por todos os meios e formas de que esse é um comportamento inaceitável e que gera consequências negativas, que causam muito sofrimento para cada pessoa envolvida diretamente com a ação e também para toda a comunidade. É importante que a escola tenha um trabalho constante e não apenas trate do tema de forma pontual.  Não podemos esquecer que o cyberbullying é só mais uma modalidade de violência que os alunos estão expostos. Não podemos deixar de pontuar que os professores também são alvo dessa violência, bem como todos os atores da educação.

Se por um lado observarmos a iniciativa de criminalizar o bullying, por outro é louvável a iniciativa das leis que tem como objetivo a conscientização, a prevenção e o combate ao bullying/assédio moral lançando mão dos métodos alternativos de solução de conflitos. Isso demonstra que a sociedade anseia e tem esperança que seja possível educar o indivíduo para que ele exerça a sua cidadania plena e que cultive uma sociedade fundamentada no diálogo, na tolerância e na convivência pacífica. Em síntese, é preciso instrumentalizar o aluno, pessoa em formação, para que seja um agente de paz, um cidadão ético e um adulto emocionalmente maduro.

Como a vítima deve proceder se estiver sofrendo cyberbullying?

Muito oportuna a sua pergunta porque nos dá a possibilidade de dizer que não basta instruir, conscientizar, apresentar literatura, cartilha e manuais para estarmos seguros que a vítima irá procurar socorro. Podemos e devemos instruí-la para procurar uma pessoa da sua confiança e contar para os seus pais o que está acontecendo. Encorajá-la a pedir ajuda e não manter o silêncio. Contudo, há algo que é subjetivo e que pode paralisá-la, por mais treinada que esteja. O fato da vítima não procurar socorro não quer dizer necessariamente que não confia no adulto, nos pais, nos amigos e/ou na escola. É nesse momento que é necessário um olhar atento diante de uma mudança de comportamento.

Eis a importância de investirmos na plateia e naqueles que testemunham os abusos. O grupo unido é muito mais forte do que um agressor ou grupo de agressores. Desenvolver a noção de que todos somos responsáveis por um ambiente seguro e equilibrado é vital para a formação de uma sociedade ética em que sem dúvida, a base é o respeito a si mesmo, ao outro e ao todo. O direito de se expressar (liberdade de expressão) não pode se desvincular do direito de respeitar e ser respeitado.

Qual a primeira atitude dos pais ao se depararem com a questão?

Acolher e ouvir.  O acolhimento no primeiro momento é essencial para que a vítima se sinta protegida e amada.  Em um segundo propiciar um espaço de escuta ativa para que a vítima possa se expressar, chorar, expressar sua angústia, raiva e outros sentimentos.

Que consequências podemos pensar a curto, médio e longo prazo?

É importante ter em mente que nem todos reagem aos abusos da mesma maneira. Somos sujeitos únicos e por isso é praticamente impossível prever exatamente as consequências. Entretanto, é passível a conclusão de que há um dano emocional, psíquico e social que se revela na falta de desejo para ir à escola, na falta de motivação para o aprendizado formal, isolamento, tristeza e outros sintomas. A médio e longo prazo pode ocorrer a cronificação dos sintomas levando a vítima a se isolar, por completo, do convívio social chegando por vezes à situações limites.

A questão do tempo quando se trata de cyberbullying é bastante relativo. Em 2012 houve dois casos de suicídio. Duas meninas, uma do interior do Rio Grande do Sul e outra do litoral do Piauí, se enforcaram após constrangimentos sofridos por meio de posts compartilhados anonimamente.

E sobre o agressor, qual a melhor maneira de ajudá-lo?

Acreditar na capacidade do agressor de se recriar. Muitas vezes o agressor não tem consciência do que o que faz ofende e destrói o outro. O programa de conscientização, prevenção e combate serve para todos os personagens do bullying. É sabido que o agressor também é ou foi vítima. Por vezes, é preciso cuidar e tratar de toda a família que está permeada por atitudes hostis e violentas e que também não tem consciência. O diálogo deve ser a mola mestra, pois nele é que nos encontramos, nos identificamos e estreitamos laços, criamos vínculos. É no diálogo que nos restauramos. Nos casos patológicos onde pode-se observar requintes de crueldade e sadismo, é necessário algo mais.

Poderíamos dizer que os agressores têm algumas características comuns que podem ser identificadas?

A falta de ética nas relações. A dificuldade em mudar de posição, o que denota pouca ou nenhuma empatia com o próximo. Comportamentos com características opressoras, tiranas, intimidadórias; chantagem, manipulação, perseguição, intrigas, fofocas também podem ser observadas nas atitudes dos agressores. 

Com o acesso fácil às redes sociais, têm crescido o número de casos?

Eu não tenho dados suficientes para afirmar que sim ou que não. Todavia, pelas características próprias da internet todo e qualquer ataque à honra, à dignidade é infinitamente devastador e não cessa. Lembra quando eu abordei a necessidade de se investir na plateia, nos espectadores e/ou testemunhas? Se tivermos uma plateia empática não vamos participar dessa propagação. Não podemos ser coniventes com um projeto de vingança por ciúmes, e este é apenas um exemplo.

Precisamos cuidar para não revitimizarmos a pessoa que está sendo assediada e sendo vítima do cyberbullying.