Rubens Ricupero: ‘Uma visão profunda da santidade da Criação’

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Ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal fala ao jornal O SÃO PAULO sobre a encíclica do Papa Francisco Laudato si’
Publicado em: 15/09/2015 - 16:00
Créditos: Jornal O SÃO PAULO - Edição 3069

Por Nayá Fernandes

Ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal entre 1993 e 1994 e ex-secretário Geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em Genebra de 1995-2004, o embaixador Rubens Ricupero, concedeu uma entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO sobre alguns aspectos da encíclica do Papa Francisco Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum.

O SÃO PAULO – Quando o Papa Francisco fala de um “projeto de casa comum”, ele se refere também em sentido de uma política internacional?

Rubens Ricupero -  O Papa Francisco utiliza a expressão “casa comum” para indicar que o aquecimento climático é o mais global de todos os problemas, uma vez que afeta a todos os habitantes do planeta. A atmosfera, os ares que respiramos, as águas do oceano, os ventos e as chuvas não obedecem a fronteiras, pertencem a todos e afetam a todos; nesse sentido, as condições planetárias constituem uma “casa comum” que não devemos sujar ou destruir. A solução para o desafio do aquecimento global terá de vir da colaboração de todos: se um só grande poluidor ficar de fora e se recusar a reduzir as emissões de gás de efeito estufa, de pouco servirá o esforço dos demais. É como na expressão que o escritor católico inglês Chesterton usava sobre o pecado original: “estamos todos no mesmo barco e estamos todos com enjoo”.

Como o Papa deixa claro logo no início do documento, diversamente da exortação “A alegria do Evangelho”, voltada internamente à Igreja, a encíclica Laudato Si’ é endereçada a todos os homens de boa vontade. Repete assim o que fez o Papa São João XXIII ao dirigir a encíclica Pacem in Terris, aos homens de boa vontade. Naquele caso, se tratava igualmente de problema comum a todos: o perigo do aniquilamento universal pela guerra nuclear. Trata-se agora de ameaça semelhante: o da destruição das condições propícias à vida humana em todo o planeta Terra devido à crescente elevação das temperaturas da atmosfera, do derretimento dos gelos polares, da subida do nível dos oceanos, da desertificação de extensas regiões do planeta.

Como se trata de ameaça global, a responsabilidade pela solução terá de ser também global. Não existindo ainda uma instituição acima das soberanias (e dos egoísmos) dos governos nacionais, o Santo Padre chega a propor que se cogite de uma autoridade mundial, acima dos países, capaz de estabelecer metas e políticas necessárias, bem como de aplicar sanções aos que as violarem. Evidentemente, estamos longe, muito longe de poder chegar a esse nível de ambição.

Em sua opinião, há uma vontade política internacional de preservação ou ela ainda está refém da economia?

A vontade política se forma gradualmente à medida que cresce a consciência da gravidade e da iminência do perigo. É preciso lembrar que a questão ambiental, sobretudo em seu aspecto mais grave, o do aumento da temperatura e da extinção das espécies, é problema relativamente recente, do qual se começou a tomar conhecimento a partir das revelações científicas na década de 1960 e da Conferência da ONU de Estocolmo em 1972. Vinte anos depois, na Cúpula da Terra ou Conferência da ONU no Rio de Janeiro (1992), deu-se um passo avante importante com a assinatura das duas grandes convenções das Nações Unidas sobre a questão: a Convenção sobre Mudança Climática e a Convenção sobre a Biodiversidade. Anos mais tarde, assinou-se o Protocolo de Kyoto, primeiro compromisso firme de governos para cortar emissões. Desse modo, o processo vem avançando por etapas. Infelizmente, poderosos interesses econômicos, em especial ligados aos combustíveis fósseis, como carvão, petróleo, vêm gastando fortunas para influenciar congressistas, políticos, formadores da opinião pública, com o fim de adiar ou evitar medidas que firam seus interesses e desvalorizem os valores gigantescos dos ativos em jazidas de carvão ou petróleo. Fazem isso, sobretudo, por meio do esforço de semear dúvidas sobre o elo causa-efeito entre a atividade humana de emissão de CO2 e o aumento da temperatura global. Isso apesar de que hoje em dia o grau de certeza da comunidade científica sobre tal ponto é de 97%! Um progresso portador de esperança foi o recente acordo entre os EUA e a China, os dois maiores poluidores mundiais, para reduzir expressivamente suas emissões. Esse acordo abre caminho para que os líderes políticos que se reunirão na Conferência de Paris em dezembro deste ano possam finalmente fechar um acordo para enfrenta a ameaça antes que seja tarde demais.

A palavra do Papa Francisco vem alcançando influência enorme, muito além dos limites dos fiéis da Igreja. Levando em conta como foram frequentes no passado os desentendimentos entre religião e ciência, talvez seja a primeira vez que uma encíclica papal tenha sido recebida com tamanho entusiasmo por cientistas de todas as orientações, muitos deles alheios às preocupações religiosas. Da mesma forma, a acolhida dos chefes de Estado e de governo, do movimento ambientalista, da União Europeia, dos EUA, tem sido extremamente positiva. Muitos intelectuais realçaram o papel do Papa em despertar a consciência dos líderes políticos e empresariais, ao tornar claro que se trata de uma responsabilidade ética e moral. Francisco tem dado ênfase ao fato de que seu documento é, acima de tudo, uma encíclica social. Assinala que a solução não deverá vir principalmente da tecnologia, da ciência ou da economia, mas sim dos princípios da justiça social, uma vez que os mais pobres são os mais vulneráveis às mudanças climáticas, embora sejam os menos responsáveis pela criação do problema.

E no Brasil, há políticas efetivas neste sentido?

Sim e não. Graças à sua riqueza em recursos hídricos – com cerca de 12% do total, o Brasil é o país que detém o maior estoque de água doce do planeta –, o país ostenta uma matriz energética na qual as usinas hidrelétricas são as principais geradoras de eletricidade, ao contrário da maioria dos demais países, nos quais a energia elétrica vem mais das termoelétricas poluentes de carvão, petróleo e gás. Pode-se até dizer que, devido à matriz com elevada participação de fontes de energia limpa e renovável (hidroeletricidade, etanol, energia gerada pelo bagaço da cana), o Brasil poderia converter-se numa “potência ambiental”. Com efeito, além da energia renovável e limpa, o nosso país possui a maior floresta tropical do mundo, desenvolveu o mais amplo programa de biocombustível em escala maciça com o etanol de cana e, como antes mencionado, dispõe da maior reserva do crescentemente escasso recurso da água doce. Lamentavelmente, em alguns aspectos tem havido retrocesso entre nós. Por exemplo, vem crescendo nos anos recentes a participação das maiores poluidoras, as termoelétricas, devido às falhas de planejamento e execução do programa hidroelétrico. Estamos também muito atrasados em comparação com outros países no aproveitamento de fontes alternativas limpas como a eólica e, mais ainda, solar. É difícil de justificar que um dos países mais ricos em quantidade e força de luz solar, em números de dias de sol sem nuvens, tenha feito tão pouco nessa matéria, onde a China, por exemplo, vem reduzindo cada vez mais o custo de geração. Outro exemplo negativo é na geração de energia a partir da biomassa, área em que raros são os países que poderiam rivalizar conosco, mas onde pouco temos investido em pesquisa para reduzir o custo e aumentar a eficiência.

O setor da floresta é, incontestavelmente, a área ambiental de contribuição mais relevante do Brasil. A maior parte das emissões poluentes de nosso país costumava vir e ainda provém do desmatamento, da destruição da Mata Atlântica, dos cerrados, da Floresta Amazônica. Nos últimos 20 anos, o Brasil tem conseguido reduzir o ritmo dos desmatamentos da Amazônia, com muito menor sucesso no Cerrado. Mesmo as conquistas, porém, são sempre ameaçadas de reversão, como temos visto cada vez que o preço da soja ou da carne bovina estimula a destruição de mata virgem. O país dispõe de leis adequadas, mas a aplicação deixa muito a desejar. As multas elevadas impostas a madeireiros clandestinos ou a incendiários da floresta raramente ou nunca são recolhidas. Tem se registrado também retrocesso na instalação de usinas que ameaçam a sobrevivência de povos indígenas, como se viu na construção de Belo Monte e agora os projetos novos perto do Parque Nacional do Xingu. Deve-se aplaudir a disposição do governo de assumir o compromisso de “desmatamento zero”, mas é preciso ficar vigilante para que o compromisso seja cumprido.

E o Estado de São Paulo, sobretudo na grande São Paulo, que saídas você vê para soluções mais ecológicas integradas ao contexto urbano?

O Estado de São Paulo apresenta em geral políticas públicas mais avançadas que as do governo federal. São Paulo foi o primeiro a adotar, antes até da Conferência de Copenhague, uma lei fixando limites de emissão de gases de efeito estufa. É também o Estado que mais avançou na proibição da queimada da cana antes da colheita, prática em vias de extinção nos canaviais paulistas. Os órgãos ambientais paulistas se destacam igualmente pelos quadros de funcionários e pela eficiência na atuação.

Falta muito, no entanto, para se poder dizer que São Paulo se encontra em nível comparável aos países mais avançados em questões ambientais. Alguns setores como o do tratamento do lixo e dos resíduos ainda se encontram em estágio muito atrasado. A mesma situação insatisfatória se registra na extensão e cobertura da rede de esgotos, na despoluição dos rios, na restauração das matas ciliares dos cursos de água.

Essas deficiências se manifestam de modo especialmente grave nos setores mais pobres da periferia da Grande São Paulo. Nessa região, ainda não se conseguiu proteger os mananciais, os rios se encontram completamente infestados, não há tratamento suficiente de esgoto, não existem nos municípios separação seletiva do lixo, usinas para reciclar e converter o lixo em energia, deslizamentos mortais de terra na época de chuvas, inundações recorrentes todos os anos etc. Um problema que se converteu em grande ameaça potencial é o do abastecimento de água que vivemos no momento. Embora seja certo que a estiagem dos últimos dois anos não teve precedentes históricos e não poderia ser prevista, a verdade é que, a partir das mudanças climáticas em curso, fenômenos como esse tendem a se tornar mais frequentes, sendo necessário começar a planejar para situações de calamidade que seguramente ocorrerão no futuro.

O Papa fala também de uma globalização do paradigma tecnocrático. Podemos citar intenções políticas e econômicas neste processo?

O Papa Francisco foi particularmente feliz em dar ênfase à necessidade de redefinir o progresso, em repensar nosso conceito de crescimento econômico, de passar por uma profunda “conversão ecológica”, o que requer, por sua vez, uma integral conversão e mudança de vida. Os que depositam a esperança em paradigmas tecnológicos, em eventuais (e incertas) descobertas de tecnologias que permitam continuar a queimar carvão, petróleo, gás, a depredar o solo, a envenenar os mananciais, a poluir os oceanos, esquecem que a situação de perigo que o mundo vive é consequência direta da Revolução Industrial da primeira metade do século 18. A invenção do motor a vapor, movido a carvão, abriu caminho para a solução de problemas humanos como a escassez de produtos (têxteis, calçados), de energia, a demora em percorrer grandes distâncias. Entretanto, ao mesmo tempo em que resolvia alguns problemas, a tecnologia criava outros novos. Foi justamente o extraordinário e intenso uso do carvão e do petróleo que tornou possível a civilização industrial, mas gerou a problemática ambiental, o aquecimento global, a extinção de espécies, tudo o que põe em risco a vida no planeta.

Da mesma forma, a solução não virá da economia, nem do mercado. Como afirmou o Relatório Stern sobre as consequências econômicas da mudança climática, encomendado pelo governo britânico, o “aquecimento global é a maior, mais grave e mais extensa falha de mercado (market failure) da História”. Isto é, deixados a si mesmos, a economia, os mercados não conhecem limites e vão depredar o ar, a água, os recursos, uma vez que não pagam os custos da destruição.

É por tal motivo que Francisco insiste em que a solução tem de vir de uma atitude de sobriedade, de simplicidade, de economia de água, de energia, de recursos, não de um consumo cada vez maior. Nisso, o Santo Padre coincide com todos os ensinamentos da ciência ambiental, unânimes em demonstrar que o método mais eficaz para lidar com o problema da água ou da energia é cortar o desperdício, reduzir as perdas, agir de maneira frugal e econômica. É essa a solução mais rápida, que dá mais resultados, que custa menos. A diferença é que Francisco parte de uma visão profunda da santidade da Criação. Ele ensina que os relatos bíblicos do Livro do Gênesis, ao falarem na Criação, revelaram que Deus criou o homem e a mulher e os colocou num jardim, o Éden, para que os seres humanos cuidassem da natureza como se cuida com carinho de um jardim. O que a Bíblia exige de nós é afastar a atitude de dominação arrogante, como se fôssemos iguais a Deus e fôssemos senhores do céu e da terra. Somos apenas guardiões provisórios, jardineiros, pessoas que têm o dever de deixar à geração dos filhos um planeta no mínimo igual, se não melhor do que receberam, nunca um planeta pior, mais poluído, mais sujo, mais inabitável. Trata-se de um dever entre as gerações.  

A encíclica, além de seus notáveis ensinamentos científicos, políticos, além de ser uma espécie de fecho de ouro da Doutrina Social da Igreja, se baseia solidamente numa profunda teologia e filosofia da relação do homem com Deus e com a natureza criada por Deus, único Senhor dos céus e da terra. Francisco vai buscar na fonte pura do Evangelho e na poesia inigualável de São Francisco de Assis a expressão de nossa fraternidade não apenas com os animais e plantas, mas com a água, o fogo, o vento, as forças naturais, a natureza da qual somos parte. O Papa nos revela que a simplicidade, a sobriedade, a frugalidade, o comedimento, a humildade que devemos manter em relação aos recursos da Natureza não significa menos vida e sim mais vida, uma vida mais intensa, mais profunda. Afinal, é Jesus no Evangelho que nos convida a mudar de vida e de mudar a própria Vida.