‘Sofrimento na Síria é geral, mas os cristãos são o elo mais fraco’

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Núncio Apostólico na Síria, Dom Mario Zenari , concedeu ao O SÃO PAULO, entrevista exclusiva para falar da sitiuação crintã em meio a guerra da Síria
Publicado em: 24/10/2017 - 09:30
Créditos: Redação
Arquivo Pessoal

O cardeal italiano Dom Mario Zenari evita entrevistas: “Por causa do trabalho que eu faço”, diz. Não por acaso. Ele é Núncio Apostólico na Síria, que está em plena guerra civil há sete anos, num conflito definido como a maior catástrofe humanitária depois da Segunda Guerra Mundial. É um dos poucos embaixadores que sobraram num país de violência com cifras, de fato, astronômicas. A guerra na Síria deixou ao menos 400 mil mortos, 5 milhões de refugiados, 6,3 milhões de desalojados e milhares de feridos. 

O SÃO PAULO procurou Dom Zenari em julho e conseguiu uma entrevista exclusiva apenas em 22 de setembro. A conversa, na Casa Santa Marta, residência  do Papa, no Vaticano, durou uma hora. Ele fez uma análise sobre a complexa situação da Síria, explicou como vivem os cristãos e o que a Igreja tem feito. “Se falamos de sofrimento, todos estão no mesmo barco. O sofrimento é transversal”, afirma. “Mas, os cristãos são o elo mais fraco.” 

Dom Zenari chegou à Síria há mais de oito anos para ser o representante do Papa, mas já está em missões diplomáticas da Santa Sé há 37 anos, sendo 18 como Núncio. Além da Síria, já atuou na Costa do Marfim e no Sri Lanka. Há exatamente um ano, o Papa Francisco o surpreendeu com a nomeação para Cardeal. “Um Cardeal deve estar pronto para dar a vida pela fé. Logo pensei que essa púrpura vai honrar o sangue de tantas crianças inocentes que morreram na Síria”, diz.
 

O SÃO PAULO – O SENHOR ESTAVA NA ALEMANHA NA QUEDA DO MURO, NO SRI LANKA E NA COSTA DO MARFIM DURANTE GUERRAS CIVIS. COMO ESSAS EXPERIÊNCIAS O PREPARARAM PARA A SÍRIA?

Dom Mario Zenari – Eu sempre brinco que sou um Núncio veterano de guerra, porque estou há 18 anos em países em guerra civil. Mas, nos outros lugares, o conflito foi limitado. Já na Síria, desde o início, tive a percepção de que o fogo se estenderia aos países vizinhos. E também se acendeu muito longe, com os ataques terroristas na França, na Alemanha, na Inglaterra... Nos primeiros dois anos, consegui visitar a Síria. É um país belíssimo, um paraíso para arqueólogos, com civilizações que remetem a 5 mil anos antes de Cristo.

 

ALI ESTÁ TAMBÉM A HISTÓRIA DA IGREJA, NÃO?

Por que será que 1,6 bilhão de pessoas se chamam “cristãos”? Poderíamos ser chamados “jesuanos”, “nazaretanos”, por causa de “Jesus”, mas alguns anos depois de Jesus ter ascendido ao céu, segundo os Atos dos Apóstolos (11,26), pela primeira vez os discípulos do Senhor foram chamados “cristãos”, em Antioquia da Síria. Lá, nos deram esse nome. Antioquia, sob o protetorado francês, passou à Turquia, mas era na Síria.

 

E SÃO PAULO ESTEVE NA SÍRIA, CERTO?

Todos lembramos do “Caminho de Damasco”, onde este jovem Saulo, um fundamentalista, teve a visão resplandecente do Senhor. Ele se tornou o apóstolo dos povos nos portões de Damasco. E quando o Senhor diz a Ananias, vá à rua chamada “Direta”; em Damasco ainda é preservada essa estrada reta. São Paulo andou por lá. Até a chegada do Islamismo, no ano 636, a Síria era toda cristã. Deu seis papas à Igreja e quatro imperadores. E Jesus nasceu em Belém, na noite de Natal, quando o governador da Síria era Quirino. Politicamente, Jesus nasceu na província romana da Síria. Não podemos esquecer disso. 

 

HOJE, PORÉM, PREVALECE O ISLÃ…

Antes do conflito atual [há 7 anos], a Síria tinha 23 milhões de pessoas. Destas, 70% eram muçulmanos sunitas, 12% alauitas, que podem considerados xiitas, mas são alauitas. Depois, cristãos eram 6%. No pós-Segunda Guerra, os cristãos eram 35%, e diminuíram com a queda da natalidade. Os muçulmanos têm famílias numerosas. Vi casos de 20 a 26 filhos. Já os cristãos têm dois ou três. Infelizmente, com o conflito, os grupos minoritários são o elo mais fraco. E, entre os cristãos, porque não são armados, a metade decidiu partir. Hoje, somos 2% a 3% da população.

 

A SITUAÇÃO PIOROU JUSTAMENTE NOS ANOS EM QUE O SENHOR JÁ ESTAVA NA SÍRIA? 

É um desastre. Cheguei na Síria dois anos antes do conflito. Era um país que se desenvolvia e, com os ventos da Primavera Árabe, mergulhou nessa onda de violência. O conflito foi se complicando. De manifestações pacíficas por mais liberdade, mais respeito aos direitos humanos, com a repressão por parte do regime [do presidente Bashar al-Assad], chegou-se à luta armada. Com a entrada de forças externas, grupos jihadistas [fundamentalistas islâmicos], chegou-se a uma guerra por procuração [proxy war], e depois internacional. De um lado, a Arábia Saudita e os países do Golfo; de outro, o Irã. E, ainda, a intervenção da Rússia, por motivos estratégicos, dos Estados Unidos e da Turquia.

 

E O ESTADO ISLÂMICO…

Quando um corpo é doente, outros problemas aparecem. É um fenômeno extra e todos estão de acordo em expulsá-lo, com diferentes estratégias. Porém, são sete ou oito bandeiras que lutam na Síria e, uma vez eliminado o Estado Islâmico, serão uma contra a outra. Até agora, não se enxerga acordo quanto ao futuro da Síria.

 

COMO VIVEM OS CRISTÃOS?

Se falamos de sofrimento, todos estão no mesmo barco. Sunitas, xiitas, alauitas, drusos… o sofrimento é transversal. Não se pode dizer que um grupo sofre mais. Numericamente sim, porque a maioria é sunita. Mas todos tiveram mortos, feridos, refugiados, desalojados, vilas destruídas, fábricas perdidas. Todos. Porém, se olhamos para o risco, é maior para os minoritários e, portanto, para os cristãos.

 

EXISTE O RISCO DE QUE OS CRISTÃOS DESAPAREÇAM DA REGIÃO?

Ainda é algo incerto, porque este regime começou mais de 50 anos atrás, sustentado por uma minoria de alauitas, 12%, e foi esperto: deu privilégios às minorias para ter apoio político. Os cristãos não tinham problemas de liberdade religiosa. Os tribunais eclesiásticos foram reconhecidos, construíam igrejas, faziam procissões. E as relações com as comunidades muçulmanas, mais de 70% da população, eram boas. O dia de Natal ou a Páscoa era sem trabalho para todos. 

Uns cumprimentavam os outros nas festas. O Islã na Síria não era fanático, era moderado. Agora as coisas mudam.

 

HOJE EXISTE DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES?

No nível dos bispos, imãs, sacerdotes, há um bom diálogo. Há também o diálogo ecumênico: diante de 70% a 80% de muçulmanos, os cristãos se unem, sejam ortodoxos ou católicos. Fala-se só de cristãos e muçulmanos.

 

OS CLÉRIGOS CRISTÃOS DESAPARECIDOS NOS ÚLTIMOS ANOS FORAM CAPTURADOS PELO ESTADO ISLÂMICO?

Não se sabe. Temos cinco eclesiásticos desaparecidos há mais de quatro anos: dois bispos ortodoxos e três padres. Não se sabe nada do destino deles. Fala-se de 30 a 40 mil desaparecidos nestes anos, sequestrados, utilizados para trocas, e no meio-tempo muitos morreram. É um enorme sofrimento.

 

MILHÕES DE JOVENS NÃO PODEM ESTUDAR NA SÍRIA. ISSO PODE TER IMPACTO POR MUITOS ANOS?

Isso varia, mas uma escola em cada três está sem uso. Cerca de 2 milhões de crianças em idade escolar não vão à escola. Quando chegam aos 18 anos, 20 anos, muitos rapazes emigram para evitar o serviço militar, porque os jovens que entraram há sete anos, se ainda vivos, estão no serviço militar. E há uma grande incerteza sobre o futuro. Eu chamo de uma “bomba”, entre aspas, a migração dos jovens. Temos uma sociedade e uma Igreja sem jovens.

 

E MUITOS ENTRE OS MIGRANTES SÃO CRISTÃOS...

A partida dos cristãos é um empobrecimento, porque, em geral, eles têm uma mentalidade universalista. Pensam no mundo, no Papa, nos outros católicos. Digo sempre: cada cristão que parte é, para a Síria, uma janela para o mundo que se fecha. A Síria arrisca se tornar uma sociedade monocultural, monorreligiosa. Os cristãos tiveram grande parte de influência histórica na Síria.

 

MAS, A IGREJA DEFENDE A LIBERDADE DE MIGRAR?

A liberdade de movimento é sacrossanta. Porém, deve-se ajudá-los também a permanecer, não só economicamente, mas espiritualmente. Se você não está sob as bombas e tem um bom trabalho, deve pensar em testemunhar a fé na Síria. Dar sua contribuição ao País. Mas, também o País deve fazer com que os cristãos se sintam bem. Nos países muçulmanos, os cristãos se sentem cidadãos de segunda classe. São países teocráticos, “repúblicas islâmicas”. Para os muçulmanos, falta muito para separar a religião do Estado e chegar ao conceito de cidadania. A Síria estava à frente nisso, tinha uma tendência laica, uma “república árabe”.

 

COMO ESTÃO AS RELAÇÕES ENTRE A SANTA SÉ E O GOVERNO ASSAD?

A Santa Sé mantém sempre o seu representante. Não o retira. E eu, junto a outros oito ou dez embaixadores, estou ali, para as igrejas e para o serviço ao País, tentando promover a paz. Grande parte das atividades da nunciatura é organizar ajuda humanitária com a Cáritas Síria e outras agências. E a Síria tem o embaixador junto à Santa Sé, que está em Genebra, na Suiça. É um canal de comunicação.

 

O SENHOR DIALOGA COM OUTROS GRUPOS, DE REBELDES, POR EXEMPLO?

Não. Aqui não me é sequer permitido, porque aí eu iria contra o governo...

 

DOM PAUL GALLAGHER, SECRETÁRIO PARA RELAÇÕES EXTERIORES DO VATICANO, DISSE ÀS NAÇÕES UNIDAS QUE É PRECISO UMA SOLUÇÃO “INTRA-SÍRIA”, ISTO É, INTERNA. É A POSIÇÃO OFICIAL DA IGREJA?

Sim. Isso é dito também por outras cadeiras: o diálogo intra-sírio. Porém, como eu dizia, há seis ou sete bandeiras externas. Cada uma tem militares e armas, mais ou menos independentes. Como é possível o diálogo entre sírios quando há outros?

 

ENTÃO, É FUNDAMENTAL, TAMBÉM, UMA SOLUÇÃO INTERNACIONAL?

O apoio da comunidade internacional é fundamental. Mas, o apoio. No entanto, estas bandeiras dão apoio ou estão implicadas no conflito? Não sei o quanto é possível um diálogo livre entre sírios. Mas queria destacar que o problema da Síria, do Iraque, do Iêmen, é, fundamentalmente, causado por países da região.

 

SÃO ELES MESMOS A RAIZ DO PROBLEMA?

O contraste que existe na Síria é entre os países do Golfo mais Arábia Saudita e o Irã. É o mesmo no Iraque, onde quem causa problemas são sunitas e xiitas. E no Iêmen. Essa é a base do problema. Entra mais a questão política do que religiosa, mas é o fato. Há antagonismo entre duas potências. Cada uma quer ter domínio sobre a região. Às vezes, digo que bastaria colocá-los na mesma mesa e, se conseguirem apertar as mãos, grande parte da questão se resolverá.

 

QUANDO O SENHOR ENCONTRA O PAPA FRANCISCO, O QUE ELE DIZ?

Ele está informado. Sabe do sofrimento das pessoas e, de fato, devo falar da minha surpresa quando ele me nomeou Cardeal. Um Cardeal deve estar pronto para dar a vida pela fé. Logo pensei que essa púrpura vai honrar o sangue de tantas crianças inocentes que morreram, tantos civis. Na história moderna das nunciaturas, sou o único núncio Cardeal. Em geral, são Arcebispos. Foi um sinal do Papa para a martirizada Síria. Recordamos, também, a oração de 7 de setembro de 2013, na Praça de São Pedro, que teve grande eco, num momento em que se pensava em intervenção militar. Depois, todos os discursos do Papa. Cada vez que ele encontra chefes de Estado e ministros, o dossiê Síria está presente. E, em 2016, a Igreja Católica financiou 200 milhões de dólares para projetos de desenvolvimento, educação, saúde, alimentação, na Síria e na região.

 

A SÍRIA TEM TANTOS MÁRTIRES. O QUE O SENHOR PENSA SOBRE O MARTÍRIO?

A palavra mártir é usada em sentido muito amplo. Falo só da Síria, e não do Iraque ou do Egito: não se pode falar de uma real perseguição contra os cristãos. Tiveram muitas ameaças, igrejas destruídas e saqueadas, insultos e algumas igrejas viraram tribunais da shari’a [lei islâmica]. Recordo três paróquias, dominadas pelo grupo Al-Nusra, onde deixam os cristãos sobreviver, com limitações, mas deixando-os rezar. Nas zonas do Estado Islâmico, não temos mais cristãos. Destaco que tantas mesquitas foram destruídas também, e tantos muçulmanos foram degolados pelo Estado Islâmico. Todos sofreram, mas os cristãos são o elo mais fraco. Têm mais riscos para o futuro. Quem sofre mais são as crianças e as mulheres, traumas físicos e psicológicos. Não vejo ainda uma saída, mas houve redução da violência em algumas zonas, um cessar-fogo para permitir a ajuda humanitária. É isso o que se pode obter agora.