Francisco de Assis e a ecologia mental: uma visão de mundo - Pe. Gilberto Orácio

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20/09/2015 - 12:00

Francisco de Assis não é por acaso chamado de santo da ecologia e admirado por pessoas que não têm uma fé explícita. Sua incidência sobre o mundo se dá por sua preocupação com a natureza e sua visão do mundo. Os cânticos atribuídos à sua autoria que falam da natureza são belíssimos, pois não o colocam fora da mesma natureza, mas o colocam e nos colocam dentro da mesma dimensão criatural. E isso ao ponto dele considerar tudo o que foi criado como irmãos e irmãs. Ele chama de irmão ou irmã o sol, a lua, as estrelas, a água, o vento, o ar, o fogo, a mãe terra e por fim, a morte. Essa relação não é algo fantasioso e mero teatro, mas é decorrente de uma visão sobre as coisas criadas. Hoje classificamos isso como uma ecologia mental. Isto é, todo nosso desejo de mudança no plano de atuação sobre o mundo criado, deverá começar em nossa mente. Se é na nossa mente que começam os projetos de destruição, é na mesma que deverá se iniciar os projetos de vida e de restauração de nossa casa comum.

Talvez o tornar realidade uma ecologia mental seja o pior exercício de conversão ecológica que tenhamos para realizar, pois as estruturas criadas e mantidas por nós a gerações, dificultam qualquer mudança desejada. As mudanças de paradigmas são muito difíceis, pois implicam numa retomada de vida e de conceitos encrustados em nossa mente, atuando sobre nossas atitudes e palavras. Desse modo, exige de nós mudança no comportamento para desestabilizarmos aqueles modos de vida prejudiciais à vida coletiva na nossa casa comum.

A ecologia mental se ocupa com a mente e com o que ocorre dentro dela. Também considera os valores e as visões de mundo que as sociedades projetaram (Leonardo Boff, As quatro ecologias, 2012, p. 22 e 23). Por isso, entendemos que nas tradições judaico-cristã o ser humano não é alguém isolado do resto do mundo, como que se vivesse numa redoma de vidro. O ser humano está conectado com a vida da natureza. As dimensões que envolvem o dia a dia da pessoa, como a política, a econômica, a religião, a sexualidade, estão entrelaçadas pelo sopro da vida e sua energia pulsante em tudo o que é criatura, mesmo que não vejamos ou sintamos. Tudo está interligado. Nada é independente.

Contemplando a conectividade de todas as coisas, o Papa Francisco nos alerta que Deus Pai é a fonte de todas as coisas, o fundamento amoroso e comunicativo de amor de tudo o que existe. Jesus, o reflexo do Pai e por quem tudo foi criado, juntou-se à terra (húmus, humano), quando formado no ventre de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, anima o universo e suscita sempre novos caminhos. O mundo foi criado pelas três pessoas a partir do único princípio divino, com a particularidade de cada pessoa. Por isso, ao comtemplarmos a natureza, louvamos a Trindade. Com isso, admitimos que toda realidade criada carrega em si uma marca profundamente trinitária. Daí que a natureza é a expressão do modelo divino, isto é, é uma trama de relações. O ser humano se realiza plenamente quanto mais se relaciona, saindo de si para viver a comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Isto para dizer que todas as coisas estão interligadas, convidando-nos a descobrir uma espiritualidade de solidariedade global que nasce do mistério revelado da Trindade (Laudato Si, 238 – 240).

Diante dessa realidade a espiritualidade ecológica exige de nós uma nova mentalidade. Não foge da crise, pois admite que as situações difíceis podem se mostrar favoráveis às mudanças necessárias, principalmente em nível mais amplo de nossa casa comum. É diante da crise que temos um sinal de alerta, de tensão e de exigências de mudanças. Portanto, a hora de mudanças é agora, diante da crise ecológica. O alerta por mudança nos coloca diante da consciência de que o que estamos vivendo no presente é um somatório das etapas passadas, onde acumulamos destruição e lixo. Tudo agora chega ao ponto de maturação que exige mudanças para novos hábitos. Essa consciência pede-nos uma educação diferente e um comportamento para tempos de crises. Isto é, uma postura de conversão ecológica, começando por uma vivência mais sóbria diante do consumo.

Existe na nossa casa comum uma tensão entre o que alcançamos e o modelo que a natureza deseja, exigindo dos seres humanos uma ação conjunta que parta do discernimento do que é melhor para toda a criação. Não só para a humanidade. O novo que se anuncia exige da humanidade mudanças partindo das reivindicações da tensão criada, tendo em vista o que estamos vivendo no que diz respeito à destruição de nossa casa comum. É necessário ouvirmos o coração e a natureza, não de forma patética e desencarnada, mas essa audição deve-se dar partindo das lutas sociais envolvendo os empobrecidos e esquecidos de nossas realidades urbanas e rurais. Essa atitude pede capacidade para julgarmos a realidade e tomada de postura firme para as mudanças de paradigmas.

São Francisco de Assis é a nossa referência. Ele viveu essa espiritualidade ecológica mental e cósmica. Conseguiu enxergar em cada ser da criação um irmão e uma irmã. Com humildade colocou-se junto deles e jamais sobre eles. E por isso, conseguiu viver uma profunda comunhão de identificação e de comoção. Para o medievalista Jacques Le Goff (2010), o “cântico do irmão sol” foi chamado por Renan, a mais bela obra da poesia religiosa desde os evangelhos. Nesta poesia, Francisco de Assis faz um resumo de todo o seu amor pela criação inteira. Ela acontece por parte. Após espalhar o seu amor por toda parte pelas criaturas vivas, animais e seres humanos, ele celebra o seu amor pelas criaturas inanimadas, às quais seu cântico concede vida e alma, até à “nossa irmã a morte”. Quando a mesma se aproximava Francisco fez com que seus irmãos Frei Ângelo e Frei Leão a cantassem em Porciúncula.    

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar - Doutor em Antropologia e Mestre em Ciências da Religião