A cena da mulher cananéia é uma das mais tocantes do Evangelho (Mt 15,21-28)

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10/08/2015 - 13:15

Homilia de dom Julio no Curso do Clero Arquidiocesano - 05/08/2015


A cena da mulher cananéia é uma das mais tocantes do Evangelho (Mt 15,21-28).
 
A fé dessa mulher e a fé do Centurião romano estão em contraste com as resistências dos fariseus e dos doutores da lei, com a falta fé dos conterrâneos de Nazaré e com a pouca fé dos discípulos de Jesus.
 
A fé da mulher cananéia está aí para nos dizer que nós não temos direito à graça de Deus, que Deus é indisponível, que não somos nós a dispor de Deus para nossos interesses. A mulher cananéia nos ensina que só a fé dá acesso ao pão dos filhos.
 
O episódio de hoje mostra os limites da missão histórica de Jesus e a sua superação. A mulher cananéia é a antecipação profética da superação dos limites da missão e da evangelização. A fé em Cristo superou os limites e os muros de separação entre puros e impuros, entre judeus e gentios.
 
A fé abate as fronteiras que opõe os cães e os filhos. Nas palavras de Jesus, o pão são os bens que são próprios do povo de Israel, por sua vocação e pelas promessas de Deus. Através da fé, a cananeia participa da promessa feita a Abraão e à sua descendência. Os dons de Deus são sem arrependimento: a precedência do povo eleito não é negada nem retirada, mas dela participamos se, como a cananéia, pedimos com humildade e confiança.
 
Temos que reconhecer que, no plano de Deus, primeiro vêm os direitos e as necessidades do povo eleito. Com esse tocante episódio, reconhecemos, porém, que a fé da mulher pagã e a bondade de Jesus superam qualquer privilégio.
 
O silêncio de Jesus põe à prova e purifica a fé da cananéia. A comparação com os cachorrinhos revela a posição de Jesus que age por exclusão. Jesus argumenta que não fica bem tirar o pão dos filhos para dar aos cachorrinhos. Assim dar a uns significa excluir outros.
 
A mulher aceita humildemente o papel de “cachorrinho” mas devolve o argumento de modo a “vencer” a lógica excludente de Jesus. Ele pensa com uma lógica diferente: umas migalhas da mesa de Jesus são também o pão, e com essas migalhas a mulher se contenta, porque as migalhas equivalem ao mesmo pão que está na mesa dos filhos.
 
A conversão para uma nova pastoral urbana inclui necessariamente o movimento missionário da Igreja em direção de todas as periferias humanas e sociais. Ir para as periferias existenciais da imensa cidade de São Paulo para escutar os apelos das periferias: nelas a cananéia de hoje clama por socorro. Mais ainda a cananéia que nós encontramos nos mostra que o abismo que há entre os cachorrinhos e os filhos é superado pelo pão que alimenta tanto uns quanto os outros.
 
Um critério para a pastoral na imensa cidade de São Paulo é o movimento permanente de ir ao encontro da cananéia que está na periferia para escutá-la e deixar nos converter reconhecendo que o que coloca em comunhão os filhos e os cachorrinhos é o Senhor, o pão descido do céus.
 
As migalhas com as quais a cananéia se contenta é um protesto e, ao mesmo tempo, uma profecia. Protesto porque aos pobres não se deve reservar somente as migalhas, porque as migalhas revelam a existência de barreiras que separam os filhos dos cachorrinhos. Profecia porque, no fim das contas, as migalhas são também o pão que desceu do céu para dar a Vida ao mundo, porque o pão é mesmo tanto para os cachorrinhos quanto para os filhos. É o pão que nos torna todos comensais da mesma mesa e dos mesmos dons.
 
Rezemos pedindo ao Senhor que nos envie e que nos atraia para as periferias da imensa cidade de São Paulo.
Supliquemos ao Senhor, que habita a nossa cidade, que nos ajude a ouvir os clamores que vêm das periferias. É um clamor que pede o pão dos filhos, que nos faz ver que somos alimentados pelo mesmo pão de Vida. É um clamor que nos faz ver que as migalhas são preciosas, mas não devem permanecer migalhas, que mesmo que deixem de ser migalhas não deixam de ser o pão que desce dos céus.
Obrigado