Corações consagrados ou blindados?

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23/07/2015 - 15:15

Discurso do Papa Francisco no encontro com sacerdotes, religiosos e seminaristas em Santa Cruz
Estai atentos à espiritualidade do zapping que não se detém diante dos necessitados

Na parte da tarde de 9 de Julho, o Santo Padre encontrou-se com numerosos sacerdotes, religiosos e seminaristas na escola salesiana “Coliseo” de Dom Bosco, em Santa Cruz. Publicamos a seguir o texto do discurso do Pontífice.

Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

Estou contente com este encontro convosco para partilhar a alegria que enche o coração e a vida inteira dos discípulos missionários de Jesus. Assim o manifestaram as palavras de saudação de Dom Roberto Bordi e os testemunhos do Padre Miguel, da Irmã Gabriela e do seminarista Damián. Muito obrigado por terdes partilhado a própria experiência vocacional.

E no relato do Evangelho de Marcos, ouvimos também a experiência de outro discípulo, Bartimeu, que se juntou ao grupo dos seguidores de Jesus. Foi um discípulo da última hora. Era a última viagem que o Senhor fazia de Jericó a Jerusalém; aqui Ele seria entregue. Cego e mendigo, Bartimeu estava na beira do caminho - mais exclusão que isso, impossível! - marginalizado; quando, porém, soube que era Jesus que passava, começou a gritar, fez-se sentir, como esta irmãzinha que com a bateria se fazia escutar e dizia “estou aqui”. Felicito-te, tocas bem.

Ao redor de Jesus, caminhavam os apóstolos, os discípulos, as mulheres que habitualmente O seguiam, com quem percorreu durante a sua vida pública os caminhos da Palestina para anunciar o Reino de Deus. E uma grande multidão. Se traduzirmos isto, forçando a linguagem, em torno de Jesus iam os bispos, os padres, as freiras, os seminaristas, os leigos comprometidos, todos os que O seguiam, escutando a Jesus, com o povo fiel de Deus.

Aparecem aqui duas realidades, que se nos impõem com força. Por um lado, o grito, o grito do mendigo e, por outro, as diferentes reações dos discípulos. Pensemos nas diferentes reações dos bispos, padres, freiras, seminaristas, aos gritos que vamos escutando ou não escutando. Quase parece que o Evangelista nos queria mostrar que tipo de eco encontra o grito de Bartimeu na vida das pessoas, na vida dos seguidores de Jesus; mostrar como reagem perante o sofrimento de quem está na beira da estrada, com quem ninguém se importa - no máximo dão uma esmola - da pessoa que está sentada na sua dor, que não entra neste círculo de pessoas que está seguindo o Senhor.

São três as respostas aos gritos do cego e hoje também estas três respostas têm atualidade. Poderíamos exprimi-las com as palavras do próprio Evangelho: Passar; Cala-te; Coragem, levanta-te.

Passar. Passar ao largo; alguns, porque não ouvem. Estavam com Jesus, olhavam para Jesus, queriam ouvir Jesus. Não escutavam. Neste passar, temos o eco da indiferença, do passar ao lado dos problemas, procurando fazer com que estes não nos toquem. “Não é meu problema”. Não os ouvimos, não os reconhecemos. Fazemo-nos surdos. É a tentação de ver como natural a dor, a tentação de habituar-se à injustiça. Sim, há gente assim: eu estou aqui com Deus, com a minha vida consagrada, escolhido por Jesus para o ministério e, sim, é natural que existam doentes, que existam pobres, que existam pessoas que sofrem; e como já é tão natural, não me chama a atenção um grito, um pedido de auxílio. Acostumar-se. E dizemos cá entre nós: é normal, sempre foi assim, contanto que não me toque - mas isto entre parênteses. É o eco que aparece num coração blindado, num coração fechado, que perdeu a capacidade de admiração e, portanto, a possibilidade de mudança. Quantos seguidores de Jesus correm o perigo de perder a capacidade de admiração, inclusive com o Senhor? Este estupor do primeiro encontro vai-se como que degradando, e isso pode passar-se com qualquer um, passou-se com o primeiro Papa: “Para onde iremos Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna?”. E depois trai-o; nega-o, a admiração degradou-se. É tudo um processo de acostumar-se. Um coração blindado.Trata-se de um coração que se habituou a passar sem se deixar tocar; uma existência que, andando por aqui e por ali, não consegue radicar-se na vida do seu povo, simplesmente porque faz parte desta elite que segue o Senhor.

Poderíamos chamar-lhe a espiritualidade do zapping. Passa e volta a passar, mas não fica nada. São aqueles que correm atrás da última novidade, do último best-seller, mas não conseguem entrar em contacto, não conseguem relacionar-se, envolver-se inclusive com o Senhor a quem seguem, porque a surdez progride.

Podereis dizer-me: “É que essas pessoas seguiam o Mestre, estavam atentas às palavras do Mestre; estavam a ouvi-lo”. Julgo que este é o maior desafio da espiritualidade cristã. Como nos lembra o evangelista João: “Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4, 20b). Eles acreditavam que escutavam o Mestre, mas também traduziam, e as palavras do Mestre passavam pelo alambique dos seus corações blindados. Dividir esta unidade - entre escutar  Deus e escutar o irmão - é uma das grandes tentações que acompanham ao longo de todo o caminho aqueles que seguem Jesus. E temos de estar cientes disto. Tal como escutamos o nosso Pai, assim escutamos o Povo fiel de Deus. Se não o fazemos com os próprios ouvidos, com a mesma capacidade de escutar, com o mesmo coração, alguma coisa se quebrou.

Passar, sem escutar a dor do nosso povo, sem nos radicarmos nas suas vidas, na sua terra, é como ouvir a Palavra de Deus sem deixar que lance raízes dentro de nós e seja fecunda. Uma planta, uma história sem raízes é uma vida seca.

Segunda palavra: Cala-te. Esta é a segunda atitude perante o grito de Bartimeu. Cala-te, não chateies, não perturbes, pois estamos a recitar a oração comunitária, estamos num momento de espiritualidade de profunda elevação. “Não chateies, não perturbes”. Ao contrário da atitude anterior, esta escuta, esta reconhece, toma contacto com o grito do outro. Sabe que está ali e reage de uma forma muito simples: repreendendo. São os bispos, os padres, os monges, os Papas com o dedo assim [em riste, em sinal ameaçador]. Na Argentina, dizemos das professoras do dedo assim [em riste]: “Esta é como a professora do tempo de Yrigoyen, daquelas que ensinavam uma disciplina muito rígida”. E o pobre Povo fiel de Deus, quantas vezes é repreendido, pelo mau humor ou pela situação pessoal de um seguidor ou de uma seguidora de Jesus. É a atitude de quem, à frente do povo de Deus, repreende continuamente, resmunga, manda calar. Dá-lhe uma carícia, por favor, escuta-o, diz-lhe que Jesus o ama. “Não, isto não se pode fazer”. “Senhora, tire o bebê da igreja, pois ele começa a chorar e eu estou a pregar”. Como se o choro de um bebê não fosse uma sublime pregação!

É o drama da consciência isolada, daqueles discípulos e discípulas que pensam que a vida de Jesus é apenas para aqueles que se consideram aptos. No fundo, há um profundo desprezo pelo Povo fiel de Deus: “Mas este cego, quem é ele para se intrometer, que fique onde está!”. Aos seus olhos parece lícito que encontrem espaço apenas os “autorizados”, uma “casta de pessoas diferentes “ que pouco a pouco se separa, diferenciando-se do seu Povo. Fizeram da identidade uma questão de superioridade. Esta identidade, que significa pertença, faz sentir-se superior, já não como pastores, mas como capatazes: “Eu cheguei até aqui, tu, coloca-te no teu lugar”. Ouvem, mas não escutam, vêem, mas não olham. Permito-me contar uma história que vivi, por volta do ano de 1975 [dirigindo-se a um bispo presente] na tua diocese, na tua arquidiocese. Eu tinha feito uma promessa ao Senhor dos Milagres de ir todos os anos a Salta, em peregrinação, para o Milagro se Ele me mandasse quarenta noviços. Mandou-me quarenta e um. Bom, depois de uma concelebração - neste local, como em todo o grande santuário, há uma missa depois da outra, confissões e não ficas parado; eu saía com um sacerdote que me acompanhava, que estava comigo, que tinha vindo comigo, e eis que se aproxima uma senhora, já de saída, com uns santinhos, uma senhora muito simples, não sei, seria de Salta ou teria vindo não sei de onde - às vezes, demoram dias para chegar à capital para a festa do Milagro. “Padre, abençoa-me”, pede ela ao sacerdote que me acompanhava; “Senhora, tu estiveste na missa”. “Sim, padre”. “Pois bem, lá a bênção de Deus, a presença de Deus abençoa tudo, tudo...”. “Sim, padre, sim, padre”. “E depois, a bênção final abençoa tudo”. “Sim padre, sim padre”. Neste momento sai outro sacerdote amigo daquele primeiro, mas que ainda não o tinha visto. Então: “Oh, tu que estás aí”. Vira-se e a senhora, que não sei como se chamava - digamos a senhora do “sim, padre” - olha para mim e pede-me: “Padre, abençoe-me o senhor”. Aqueles que sempre colocam barreiras ao Povo de Deus, separam-no. Ouvem, mas não escutam; fazem um sermão, vêem, mas não fixam o olhar. A necessidade de se diferenciar bloqueou-lhes o coração. A necessidade, consciente ou inconsciente, de dizer “eu não sou como ele, não sou como eles” afastou-os não só do grito do seu povo e do seu pranto, mas também e particularmente dos motivos de alegria. Rir com aqueles que riem, chorar com os que choram: está aqui uma parte do mistério do coração sacerdotal e do coração consagrado. Às vezes existem castas que nós vamos criando com este comportamento e assim nos separamos. No Equador, tomei a liberdade de dizer aos sacerdotes - as freiras também estavam presentes - que, por favor, pedissem todos os dias a graça da memória, de não se esquecer de onde o tiraram. Tiraram-te de junto do rebanho. Nunca te esqueças, não te assoberbes, não negues as tuas raízes, não negues essa cultura que aprendeste da tua gente porque agora tens uma cultura mais sofisticada, mais importante. Existem sacerdotes que sentem vergonha de falar a sua língua originária e então esquecem-se do seu quíchua, do seu aimara, do seu guarani: “Porque não, agora falo de modo elegante”. A graça de não perder a memória de Povo fiel. É uma graça. No livro do Deuteronômio, quantas vezes Deus fala ao seu Povo: “Não te esqueças, não te esqueças, não te esqueças”. E Paulo admoesta o seu discípulo predileto, que ele mesmo consagrara como Bispo, Timóteo: “Lembra-te da tua mãe e da tua avó”.

A terceira palavra: Coragem, levanta- te. É este é o terceiro eco. Um eco que não nasce diretamente do grito de Bartimeu, mas da reação das pessoas que vêem como Jesus se comportou perante o grito do cego mendicante. Ou seja, aqueles que não davam espaço às suas súplicas, aqueles que não lhe abriam um lugar, ou alguém que a fazia calar-se... Mas claro, quando vê que Jesus reage assim, muda: Coragem, levanta-te. É um grito que se transforma em Palavra, em convite, em mudança, em proposta de novidade frente às nossas formas de reagir ao Santo Povo fiel de Deus.

Ao contrário dos outros que passavam, diz o Evangelho que Jesus se deteve e perguntou: “O que está a acontecer? Quem “toca a bateria”?”. Deteve-se perante o clamor de uma pessoa. Sai do anonimato da multidão para o identificar, comprometendo- se assim com ele. Radica-se na sua vida. E, longe de o mandar calar, pergunta: “Que posso fazer por ti?”. Não precisa de se diferenciar, de se separar, não lhe faz um sermão, não o cataloga e pergunta para ver se está autorizado a falar ou não. Limita-se a fazer uma pergunta, a identificá-lo pretendendo ser parte da vida daquele homem, para assumir a sua própria sorte. Deste modo restitui-lhe gradualmente a dignidade que tinha perdido, à margem do caminho e cego. Faz a sua inclusão. E longe de olhá-lo de fora, esforça-se por se identificar com os seus problemas e, assim, manifestar a força transformadora da misericórdia. Não há compaixão - compaixão e não lástima - não existe compaixão que não se detenha. Se não te deténs, se não “padeces com”, tu não tens a compaixão divina. Não existe uma compaixão que não escute. Não existe uma compaixão que não se solidarize com o outro. A compaixão não é zapping, não é silenciar a dor; pelo contrário, é a lógica própria do amor, o “padecer com”. É a lógica que não está centrada no medo, mas na liberdade que nasce do amar e coloca o bem do outro acima de todas as coisas. É a lógica que nasce do não ter medo de se aproximar da dor do nosso povo. Embora muitas vezes se reduza a estar ao seu lado e fazer desse momento uma oportunidade de oração.

E esta é a lógica do discipulado. Isto é o que faz o Espírito Santo conosco e em nós. Disto somos testemunhas. Um dia Jesus viu-nos à beira da estrada, sentados nas nossas dores, nas nossas misérias, nas nossas indiferenças. Cada um conhece a sua história antiga. Não silenciou os nossos gritos; antes, deteve-se, aproximou-se e perguntou que podia fazer por nós. E, graças a tantas testemunhas que nos disseram “coragem, levanta-te”, gradualmente tocamos aquele amor misericordioso, aquele amor transformador que nos permitiu ver a luz. Não somos testemunhas de uma ideologia, não somos testemunhas de uma receita, nem de uma forma de fazer teologia. Não somos testemunhas disso. Somos testemunhas do amor sanador e misericordioso de Jesus. Somos testemunhas da sua intervenção na vida das nossas comunidades.

E esta é a pedagogia do Mestre; esta é a pedagogia de Deus com o seu Povo. Passar da indiferença do zapping a: “Coragem, levanta-te [o Mestre] chama-te” (Mc 10, 49). E não porque somos especiais, não porque somos melhores, nem porque somos os funcionários de Deus, mas apenas porque somos testemunhas agradecidas da misericórdia que nos transforma. E quando se vive assim, há júbilo e alegria, e podemos unir-nos ao testemunho da irmã, que assumiu na sua vida o conselho de santo Agostinho: “Canta e caminha”. Esta alegria vem do testemunho da misericórdia que transforma.

Não estamos sozinhos, neste caminho. Ajudemo-nos uns aos outros com o exemplo e a oração. Estamos circundados por uma nuvem de testemunhas (cf. Hb 12, 1). Lembremos a beata Nazária Inácia de Santa Teresa de Jesus, que dedicou a sua vida ao anúncio do Reino de Deus cuidando dos idosos, com a “panela do pobre” para aqueles que não tinham o que comer, abrindo orfanatos para crianças sem ninguém, hospitais para feridos de guerra, e até criando um sindicato feminino para a promoção da mulher. Lembremos também a venerável Virgínia Blanco Tardío, devotada totalmente à evangelização e ao cuidado das pessoas pobres e doentes. Elas e muitos outros anônimos, tantos, daqueles que seguem Jesus, servem de estímulo no nosso caminho. Esta nuvem de testemunhas! Vamos para diante com a ajuda de Deus e a cooperação de todos. O Senhor serve-se de nós para que a sua luz chegue a todos os cantos da terra. E segui adiante, cantai e caminhai. E enquanto cantais e caminhais, rezai por mim, que necessito das vossas orações.

Obrigado!

Fonte: Edição nº 29 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – páginas 8 e 9