Espiritualidade e crise (l)

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27/08/2015 - 09:45

Crise é uma condição humana e essa constatação pode parecer muito difícil de ser aceita, porque a palavra vem carregada de sentidos desfavoráveis e de pessimismo. Na linguagem mais comum, crise ressoa como angústia diante de uma situação, ou como acontecimento desfavorável e perigo.

Na origem do termo, a palavra crise tem outros significados, desfazendo uma leitura unilateral. Crise pode indicar uma força distintiva ou de separação, uma eleição, decisão ou escolha. Uma pessoa em crise seria alguém que está diante de uma situação difícil, mas aberta a possibilidades que passam pelas escolhas.

O processo de purificação de certos metais nos oferece uma imagem da crise, enquanto processo de separação. O crisol, ou cadinho, é um objeto utilizado pelo artesão para purificar metais preciosos como o ouro e a prata. Os metais colocados no crisol são submetidos a altas temperaturas, até que se tornem líquidos e através desse processo são separados das impurezas.

Esse caminho da purificação é a verdadeira crise em que o metal, submetido ao fogo intenso, passa pelo estado líquido e retorna ao estado sólido livre das impurezas. Quando pensamos a vida humana, encontramos semelhanças entre a purificação do metal e as experiências de vida; entre as crises vividas pelas pessoas e o resultado dessas crises enquanto experiência de purificação, separação e eleição. Na vida, somos acrisolados pelos acontecimentos e deles podemos sair mais fortalecidos.

A Sagrada Escritura relata muitas crises vividas pelo povo de Deus. Já nas primeiras páginas do Gênesis, nos deparamos com a crise fundamental da pessoa humana. Adão e Eva se encontravam numa situação de escolha, o que atingiu toda a obra criada. A causa foi a escuta do maligno que levou a uma mudança de relacionamento do homem com Deus, do homem consigo mesmo, e do homem com a obra criada.

Deus, porém, não se esqueceu da bondade que Ele mesmo imprimiu na criação e, por isso, reafirmou o diálogo de salvação: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência da mulher. Ela (a descendência da mulher) te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3,15).

Nas experiências vividas por personagens específicos - um patriarca, um profeta, um homem ou uma mulher do povo - e também nas experiências coletivas como o êxodo ou o exílio, encontramos outros momentos de crise na história de Israel. Tomemos alguns exemplos: José e Noemi, no Antigo Testamento.

José, um dos filhos de Jacó, foi vítima da inveja de seus irmãos (cf Gn 37,11). Sua história pessoal apresenta uma série de acontecimentos aparentemente desconexos, uma crise de sentido. Vendido pelos irmãos, ele foi levado para o meio de um povo estranho e de costumes diversos. Sofreu assédio, foi prisioneiro, envolveu-se em questões políticas e econômicas. No reencontro com os irmãos, e na experiência do perdão, a crise de sentido encontrou sua resposta na certeza da presença providente de Deus (cf Gn 45,5).

Um outro exemplo: Noemi e sua família que precisaram migrar de seu país por causa da fome. O drama dessa família envolveu ainda outras questões como a mistura das raças, diferenças de fé, cultura e valores. A narrativa descreve os caminhos e as escolhas de Noemi, e como ela superou tudo conservando sua fidelidade a Deus e, finalmente, encontrou Nele sua libertação (cf Rt 4,14).

As experiências relatadas indicam que a fé não se separa dos fatos da vida cotidiana, isto é, da história, mas integra a vida da pessoa. A crise é geralmente uma realidade inevitável, ou que foge ao controle. Quando essas duas realidades, experiência de fé e crise, se encontram, surge uma força capaz de dar sentido à existência humana. Porém, a fé não esconde a dor do momento vivido na crise, e espera ver realizada a promessa.

Fonte: Edição nº 3065 do Jornal O SÃO PAULO – página 05