Política e sociedade

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16/11/2017 - 09:45

Foi publicado um livro de Dominique Wolton realizado com o Papa

Da gênese e da elaboração do livro e dos seus conteúdos fala Dominique Wolton numa entrevista exclusiva a “Le Figaro” que publicamos integralmente.

Como surgiu a ideia deste livro?

Sou um pesquisador de comunicação política. Por conseguinte, surpreendeu-me o impacto da comunicação do Papa Francisco desde a sua primeira aparição pública. Suscitou imediatamente a simpatia geral, com um vocabulário simples e ao mesmo tempo comprometido, e inspirou uma adesão imediata. Eu via uma pessoa desconhecida, que saiu do nada, que encontrava as palavras justas e demonstrava assim uma capacidade incrível de comunicação. São raras no mundo as pessoas que o conseguem fazer. Se João Paulo II foi um Papa mundial, Francisco tornou-se em poucos segundos o Papa da globalização. Encantaram-me também a sua alegria e a sua simplicidade: nada tinha do “tradicionalista” de uma Igreja católica sentida como oficial, séria, trágica ou inacessível. Estava próximo do povo. Ao ver um líder mundial como ele, capaz de falar com poucas palavras ao mundo inteiro e sobretudo de se fazer compreender, tive a ideia de lhe propor um livro-entrevista para conhecer melhor a sua personalidade.

Como convenceu Francisco?

Eu não sou um perito em religião. Tinha feito apenas a experiência do livro-entrevista com o cardeal Lustiger. Decidi atravessar o Rubicão enviando-lhe um e-mail com o projeto do livro em três páginas, o índice e o meu currículo. Foi como lançar uma garrafa no oceano... três meses depois recebi um e-mail enviado ao Conseil national de la recherche scientifique no qual se lia que o Santo Padre estava disposto a receber-me. Para mim ainda é incrível!

O primeiro encontro?

Quando entrou naquele ambiente anônimo da Casa Santa Marta foi como um flash... Primeiro fiquei admirado ao ver a sua túnica branca, depois pela gentileza e bondade do seu olhar. Eu mantive a minha distância de pesquisador mas estava perturbado com a sua humanidade. Não conhecia a praxe do Vaticano e não sabia que receber-me já significava ter aceite a ideia do livro. Imaginava que teríamos falado da viabilidade do projeto. Por conseguinte apresentei-me imediatamente pensando que o Papa me teria submetido a um exame. Pouco depois o tradutor disse-me ao ouvido: “Penso que o Papa deseja começar...”. Não tinha nada comigo, o meu gravador, os meus apontamentos, as minhas perguntas! Os casos da vida prevalecem deveras sobre qualquer metodologia nossa! Peguei no meu smartphone para gravar e começámos. A simpatia fez o resto...

O que mais o surpreendeu do Papa?

Não vivemos no mesmo espaço-tempo. Um cientista tem quatro ou cinco séculos de profundidade, o Papa navega, à-vontade, em três milênios. Impressionaram-me imediatamente a sua fé, a sua alegria, a sua bondade, a sua modéstia, a sua lucidez. Mas acerca da natureza humana não se deixa levar. E muito menos acerca dos mecanismos de poder e de domínio... Não é ingénuo e com frequência diz que “a Igreja viu tantas”, não é um problema. Ao contrário, faz pouca referência a Deus. É muito parcimonioso no uso do vocabulário religioso. Neste aspeto é um leigo. Há muitos prelados que se comprazem numa marmelada teológico-conceitual, o que coloca a nós, leigos, numa posição de inferioridade ou de rebelião. Ele é uma pessoa normal, nisto consiste o seu gênio. Muitos pensam que quanto mais se é enigmático, tanto mais se é inteligente. Pois bem, não é assim: não há pensamento sem clareza de exposição. Quanto mais se é inteligente, tanto mais se é claro. E o Papa Francisco é com frequência límpido.

Ficou fascinado, não é?

Somos muito diversos, mas ao mesmo tempo próximos. Eu sou laico, um laico francês, lei de 1905, universitário, pesquisa pública... Sou de cultura cristã, católica, mas sou agnóstico. Francisco tem uma dimensão espiritual que se vê da sua alegria, da sua fé, mas é também totalmente laico no seu modo de agir. Pode dialogar tranquilamente com qualquer pessoa. É um político. Fascinou-me nele esta mistura constante de homem de fé e laico.

Um Papa laico?

É uma pessoa que distingue espontaneamente entre Igreja e Estado. Claro, há influências recíprocas mas para ele não existe ligação alguma entre poder político e poder religioso. O poder político não se deve apoiar no religioso. O religioso deve permanecer no seu lugar. E isto não diz respeito só à lei de 1905, que já tem um século, mas é a questão central do próximo século, sobretudo com o islão. Desta separação dos poderes dependerão a paz ou a guerra de amanhã.

O mundo laico nada espera da Igreja católica, mesmo quando ela fica no seu lugar...

Não existe laicidade 100% pura. Há uma incomunicabilidade entre um leigo e um religioso. E experimentamos isto durante estas entrevistas. Ambos, leigo e religioso, têm razão. Francisco é a favor de uma laicidade aberta às questões espirituais. E o laico só pode existir se houver a religião. Inspira-se nela mesmo se nem sempre o reconhece... Podemos ser ateus mas seríamos ingênuos se pensássemos que é possível suprimir os temas da espiritualidade, pois o da espiritualidade é o tema da metafísica. Nenhum ser humano a pode evitar. Ninguém pode dizer que não se faz a pergunta acerca de quem é, para onde vai e sobre o fato de que um dia morrerá. Alguns ateus podem dizer que a religião é absurda mas nenhum escapará às questões que ela levanta. A solução consiste numa coabitação na qual um respeita o outro.

No campo das ideias, surpreendeu-o mais alguma coisa?

A sua visão mundial da pobreza: tem uma grande preocupação pelas desigualdades entre norte e sul. Diria até que se sente indignado mesmo se se controla.

Há quem diga que este Papa é de esquerda...

O critério direita-esquerda não se aplica em matéria religiosa. Ou pelo menos só parcialmente. Contudo, não é suficiente. Esquerda, direita, existem; há quem domina e quem é dominado, mas a força da espiritualidade e da religião consiste em mostrar que há outras dimensões. Reduzir as religiões a uma abordagem esquerda-direita é um empobrecimento perigoso para todo o mundo.

Tudo o que diz no livro sobre o plano social e político corresponde a uma agenda social-democrática?

Diria que é bastante de direita em virtude da sua formação nos jesuítas argentinos. Não tem uma formação de esquerda, mas compreendeu depressa a sociedade latino-americana. Estando tão próximo dos pobres, olhou para a esquerda. Eis o motivo da sua obsessão pelos pobres, pelos excluídos, pelos oprimidos. Mas não é marxista. E cair nisto é, a seu parecer, um erro para a Igreja. Eis o motivo do debate complexo entre a teologia da libertação e a teologia do povo. Ele não gostava da expressão teologia do povo, mas procurava uma frase que tivesse em consideração a inevitável revolta popular na América Latina, sem cair no marxismo.

Em síntese, qual pensa que seja a posição dele?

Penso que é indisciplinado! Não pode ser inserido num compartimento. Este Papa sente-se bem no meio dos pobres, dos oprimidos. Ama o povo. Sente-se bem só no meio do povo. É feliz apenas em contato com as pessoas. A maior lição que aprendi daqueles encontros é que este Papa segue os evangelhos. Diz unicamente o que está nos evangelhos. O que dá sentido à vida dos homens são os pobres, os excluídos, os oprimidos. Os ricos, de certa forma, desenrascam-se sempre, mas nunca serão felizes. E é de uma força incrível...

Na Europa as suas posições sobre a abertura à imigração não agradam...

Daqui a vinte anos diremos “ainda bem que o disse”, de outra maneira, nós, democracias, enfrentaremos a guerra. Estamos num mundo transparente. Os países pobres veem os mortos do Mediterrâneo e a indiferença dos países ricos. Se não dissermos nada, se não fizermos nada, a violência será terrível. Por conseguinte, ele tem muita razão. Pensa que é um dos maiores escândalos da globalização. Os países ricos criaram esta situação com as guerras e o capitalismo selvagem acelerou tudo isto nos últimos trinta anos. Hoje as vítimas econômicas e políticas desta situação chegam aos países ricos democráticos que lhes dizem para irem embora! A ira e a cólera que o Papa Francisco suscita significa que acertou no alvo. Há ódio pelo que diz acerca dos migrantes. Mas ele não proporá a política do avestruz. Por conseguinte presta um imenso serviço à humanidade dizendo-lhe o que ninguém quer ouvir.

Francisco está ciente de ter também uma oposição dentro da Igreja católica?

Não me quis explicar mais porque o objetivo do livro não era entrar nas desavenças da Igreja católica. Ao contrário, Francisco está obcecado com a comunhão entre todos na Igreja. Presta grande atenção ao povo cristão para que não haja rupturas. Não é um homem de conflito, um homem de ruptura. Pretende unir, unir continuamente. Em relação às hostilidades, aos ajustes de contas e às relações de força dentro da Igreja, surpreendeu-me ver que não considera que a sua vida dependa destas questões. Vê as coisas a longo prazo, confia no tempo, com uma paciência infinita, sem se zangar, com uma espécie de confiança impressionante. Nunca o encontrei belicoso ou zangado. Fiquei bastante surpreendido, como agnóstico, ao ver o seu nível de confiança. E como agnóstico posso dizer: sim, a fé existe. E isto continua a surpreender-me. Em relação à Cúria Romana, por exemplo, há humorismo, mas não cólera. É raro, porque logo que se obtém o poder, há violência. E quando se está em Roma, trata-se de um poder mundial.

O Papa fez uma censura?

Nenhuma censura. Há sem dúvida coisas que não disse na conversa, mas em relação ao manuscrito nada foi tirado, nem sequer coisas que me pareciam demasiado pessoais. Preocupou-se apenas de que ninguém se reconhecesse nos exemplos que citei.

Nenhum tema tabu?

Nenhum! Quando lhe disse que tinha esquecido de lhe fazer perguntas sobre as mulheres riu e começamos!

JEAN-MARIE GUÉNOIS

Fonte: L’OSSERVATORE ROMANO, Ano XLVIII, número 37 (2.481), de 14 de setembro de 2017, p. 20-21