Sou um homem perdoado

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16/12/2015 - 14:45

A misericórdia na vida da Igreja

Apresentamos a entrevista que o Papa Francisco concedeu à revista “Credere”, publicada no número 49.

Padre Santo, agora que estamos para entrar no Jubileu, poderia explicar-nos qual a razão do coração que o levou a dar realce ao tema da misericórdia? Qual urgência sente, em relação a isto, na situação actual do mundo e da Igreja?

O tema da misericórdia acentuouse com vigor na vida da Igreja a partir de Paulo VI. João Paulo II evidenciou-o fortemente com a Dives in misericordia , com a canonização de santa Faustina e a instituição da festa da Divina Misericórdia na Oitava de Páscoa. Em sintonia com isto, senti que há como que um desejo do Senhor de mostrar a sua misericórdia aos homens. Portanto, não veio à minha mente, mas retomo uma tradição relativamente recente, embora sempre tenha existido. E deime conta de que era preciso fazer algo e dar continuidade a esta tradição. O meu primeiro Angelus como Papa foi sobre a misericórdia de Deus e naquela ocasião falei também de um livro sobre a misericórdia que o cardeal Walter Kasper me ofereceu durante o conclave; na minha primeira homilia como Papa, no domingo 17 de Março na paróquia de Santa Ana, voltei a falar sobre a misericórdia. Não foi uma estratégia, veio-me de dentro: o Espírito Santo quer algo. É óbvio que o mundo de hoje tem necessidade de misericórdia, precisa de compaixão, isto é, de “sofrer com”. Estamos acostumados com as más notícias, as notícias cruéis e com as maiores atrocidades que ofendem o nome e a vida de Deus. O  mundo tem necessidade de descobrir que Deus é Pai, que existe misericórdia, que a crueldade não é o caminho, que a condenação não é o caminho, porque a própria Igreja às vezes segue uma linha dura, cai na tentação de seguir uma linha dura, na tentação de evidenciar só as normas morais, mas muitas pessoas ficam excluídas. Veio-me à mente aquela imagem da Igreja como um hospital de campo depois da batalha; é verdade, quantas pessoas feridas e destruídas! Os feridos devem ser cuidados, ajudados a sarar, não submetidos a exames para o colesterol. Penso que este seja o momento da misericórdia. Somos todos pecadores, todos carregamos pesos interiores. Senti que Jesus quer abrir a porta do Seu coração, que o Pai quer mostrar as Suas vísceras de misericórdia e por isso nos envia o Espírito: para nos movimentar e para nos libertar. É o ano do perdão, o ano da reconciliação. Por um lado, vemos o tráfico de armas, a produção de armas que matam, o assassínio de inocentes dos modos mais cruéis, a exploração de pessoas, de menores e crianças: está a actuar- se - permita-me o termo - um sacrilégio contra a humanidade, porque o homem é sagrado, é a imagem do Deus vivo. Eis que o Pai diz: “Detende-vos e vinde a mim”. É isto que vejo no mundo.

Vossa Santidade disse que se sente pecador como todos os crentes, carente da misericórdia de Deus. Que importância teve no seu caminho de sacerdote e de bispo a misericórdia divina? Recorda em particular um momento em que sentiu de maneira transparente o olhar misericordioso do Senhor na sua vida?

Sou pecador, sinto-me pecador, tenho certeza de que o sou; sou um pecador para o qual o Senhor olhou com misericórdia. Sou, como disse aos presos na Bolívia, um homem perdoado. Sou um homem perdoado, Deus olhou para mim com misericórdia e perdoou-me. Ainda cometo erros e pecados, e confesso-me a ada quinze ou vinte dias. E se me confesso é porque preciso de sentir que a misericórdia de Deus ainda está comigo. Recordo-me - já o disse muitas vezes - de quando o Senhor olhou para mim com misericórdia. Tive sempre a sensação de que cuidasse de mim de um modo especial, mas o momento mais significativo verificou-se a 21 de Setembro de 1953, quando eu tinha 17 anos. Era o dia da festa da Primavera e do estudante na Argentina, e tê-lo-ia passado com outros estudantes; eu era católico praticante, ia à missa ao domingo, mas nada mais além disso... frequentava a Ação Católica, mas nada fazia, era só um católico praticante. Ao longo das ruas para a estação ferroviária de Flores, passei perto da paróquia que frequentava e senti-me impelido a entrar: entrei e vi um sacerdote que não conhecia. Naquele momento não sei o que aconteceu, mas senti uma forte necessidade de me confessar no primeiro confessionário à esquerda - muitas pessoas iam rezar ali. E não sei o que aconteceu, mas saí diferente, mudado. Voltei para casa com a certeza de que devia consagrar-me ao Senhor e aquele Sacerdote acompanhou-me por quase um ano. Era um presbítero de Corrientes, padre Carlos Benito Duarte Ibarra, que vivia na Casa do Clero de Flores. Sofria de leucemia e tratava-se no hospital. Morreu no ano seguinte. Depois do funeral chorei amargamente, sentia-me totalmente perdido, com a sensação de que Deus me tivesse abandonado. Foi este o momento no qual encontrei a misericórdia de Deus, o qual está muito ligado ao meu lema episcopal: o dia 21 de Setembro é a festa de são Mateus; e Beda o venerável, falando da conversão de Mateus, diz que Jesus olhou para Mateus miserando atque eligendo. Trata-se de uma expressão que não se pode traduzir, porque em italiano um dos verbos não tem gerúndio, nem em espanhol. A tradução literal seria “misericordiando e escolhendo” quase como um trabalho artesanal. “Misericordiou-o”: esta é a tradução literal do texto. Quando anos depois, recitando o breviário em latim, descobri esta leitura, dei-me conta de que o Senhor me tinha modelado artesanalmente com a sua misericórdia. Cada vez que vinha a Roma, pois ficava hospedado na via della Scroffa, visitava a Igreja de São Luís dos franceses para rezar diante do quadro de Caravaggio, a Vocação de são Mateus.

Segundo a Bíblia, o lugar onde a misericórdia de Deus reside é o ventre, as vísceras maternas, de Deus. Que se comovem a ponto de perdoar o pecado. O Jubileu da misericórdia pode ser uma ocasião para redescobrir a “maternidade “ de Deus? Há também um aspecto mais “feminino” da Igreja que deve ser valorizado?

Sim, ele mesmo o afirma, quando em Isaías diz se porventura uma mãe se esquece do seu filho, até uma mãe pode esquecer... “mas eu nunca te esquecerei”. Nisto podemos ver a dimensão materna de Deus. Nem todos compreendem quando se fala da “maternidade de Deus”, não é uma linguagem popular - no sentido bom da palavra - parece uma linguagem um pouco eleita; por isso prefiro usar a ternura, precisamente de uma mãe, a ternura de Deus, a ternura nasce das vísceras paternas. Deus é pai e mãe.

A misericórdia, sempre se nos referirmos à Bíblia, faz-nos conhecer um Deus mais “emotivo” do que aquele que às vezes imaginamos. Descobrir um Deus que se comove e se enternece pelo homem pode mudar também a nossa atitude em relação aos irmãos?

Descobri-lo levar-nos-á a assumir um comportamento mais tolerante, mais paciente e mais terno. Em 1994, durante o Sínodo, numa reunião dos grupos, disse que se devia instaurar a revolução da ternura, e um padre sinodal - um bom homem, que respeito e ao qual quero bem - já muito idoso, disse-me que não convinha usar aquela linguagem e deu-me explicações razoáveis, de homem inteligente, mas continuo a dizer que hoje a revolução é da ternura porque dela deriva a justiça e todo o resto. Se um empresário assume um empregado de Setembro a Julho, devemos dizer-lhe que não se comporta correctamente porque, demitindo-o nas férias em Julho para o readmitir com um novo contrato de Setembro a Julho, o trabalhador não terá direito à indemnização, à reforma, nem à previdência social. Não tem direito a nada. O empresário não demonstra ternura, mas trata o empregado como um objecto - só para dar um exemplo de uma situação onde não há ternura. Se o empresário se pusesse no papel do empregado, em vez de pensar no próprio bolso por algum centavo a mais, então tudo mudaria. A revolução da ternura é o que devemos cultivar hoje como fruto deste ano da misericórdia: a ternura de Deus para cada um de nós. Cada um de nós deve dizer: “Sou um desventurado, mas Deus ama-me assim, então também eu devo amar os outros do mesmo modo”.

É famoso o “discurso da lua” do Papa João XXIII quando, uma noite, saudou os fiéis dizendo: “Acariciai as vossas crianças”. Esta imagem tornouse um ícone da Igreja da ternura. De que modo o tema da misericórdia poderá ajudar as nossas comunidades cristãs a converter-se e a renovar-se?

Quando vejo os doentes, os idosos, a carícia vem-me espontânea... A carícia é um gesto que pode ser interpretado ambiguamente, mas é o primeiro gesto que a mãe e o pai fazem à criança que acabou de nascer, o gesto do “gosto de ti”, “amo-te”, “desejo que sejas feliz”.

Poderia antecipar-nos um gesto que pretende fazer durante o Jubileu para testemunhar a misericórdia de Deus?

Haverá muitos gestos, mas numa sexta-feira de cada mês farei um gesto diferente.

Fonte: Edição nº 50 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – página 04