Um padre na origem de São Paulo

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20/03/2014 - 00:00

Em maio passado, tivemos a visita do Postulador Geral para a Causa dos Santos da Companhia de Jesus, padre Anton Witwer. Veio especialmente de Roma para conhecer a terra onde trabalhou e viveu a maior parte de sua vida o Beato Padre José de Anchieta. Padre Witwer nos visitou e também foi recebido pelos arcebispos do Rio de Janeiro (RJ) e de Vitória (ES), e pelos bispos de São Miguel Paulista e de Santos (SP). Tratamos da situação atual da Causa de Canonização de padre Anchieta e ficou claro o empenho de todos no trabalho para que o momento tão esperado pelos católicos brasileiros, de ter o seu Evangelizador sendo declarado Santo pelo Papa, aconteça logo. Todos os brasileiros aguardam a comprovação de um milagre ocorrido pela intercessão do “Apóstolo do Brasil” após 1980 – ano em que foi beatificado – único passo que falta para a canonização.

Foi possível constata que para isso é necessário o aumento da devoção popular ao Beato Anchieta. Por esse motivo, e para conhecer as pessoas que confiam plenamente na intercessão de Anchieta, padre Witwer participou de vários encontros com significativos números de fiéis, tanto aqui no Pátio do Colégio, no centro da capital paulista, como na Biquinha de São Vicente, no litoral, na concorridíssima celebração eucarística na cidade de Anchieta, no interior do Espírito Santo, e na reunião, promovida pela Prefeitura Municipal local, com as pessoas que se dispunham a ser divulgadoras da Causa.

De fato, o religioso jesuíta – que chegou ao país em julho de 1553, desembarcando em Salvador (BA), deixou marcas indeléveis nas cidades brasileiras pelas quais não apenas passou, mas ajudou a fundar. São Paulo é uma dessas cidades. Aqui, nas terras do então Planalto de Piratininga, Anchieta fundou um Colégio e, consequentemente, a cidade que se formou a partir e em volta dele. Não porque o religioso tivesse participado da missa de fundação, mas porque era a alma do Colégio e o grande catequizador da região.

Os indígenas e os brancos vinham morar próximo ao Colégio porque queriam que seus filhos aprendessem a ler, escrever e cantar, além, é claro, de assimilar a doutrina cristã. Em pouco tempo, a aldeia virou povoado e, depois, vila. Anos mais tarde, a vila se transformaria na grande metrópole que hoje conhecemos. Portanto, a origem da cidade de São Paulo tem um padre como grande protagonista.

Marcas desta presença religiosa nas origens de São Paulo ainda podem ser constatadas hoje. Os restos mortais de um dos grandes colaboradores de padre Anchieta, o Cacique Tibiriçá, por exemplo, se encontram na cripta da Catedral da Sé. O próprio Pátio do Colégio, apesar de não conservar o prédio original, é uma referência para a cidade. Localizado no centro comercial paulistano, ele recorda sempre que São Paulo nasceu de uma missão cristã e, por isso, nunca poderá deixar-se esquecer de que sua vocação é garantir o anúncio de que Deus a habita.

Neste Ano Sacerdotal, que se encerrou no último dia 11 de maio, e que foi proclamado pelo Papa Bento XVI para marcar os 150 anos de morte de São João Maria Vianney, Anchieta é exemplo de um grande padre que viveu em São Paulo.

Já desde jovem possuía o carisma apostólico de um sacerdote. Mesmo doente e, às vésperas de embarcar para o Brasil, tendo recebido a notícia da morte do pai, não recuou na missão de anunciar o Evangelho de Jesus para os indígenas de terras tão distantes.

Anchieta nasceu no dia 19 de março de 1534, na Ilha de Tenerife, nas Canárias (Espanha). Viveu com a família até os 14 anos, quando foi, com um de seus irmãos, estudar em Coimbra (Portugal). Educados na fé católica, os adolescentes não gostaram do clima de permissividade que encontraram na universidade. Passado um tempo, sentindo que a degradação moral aumentava, recordando-se dos ensinamentos recebidos nas Canárias e, impelido pelo forte desejo de manter puro o seu coração, Anchieta foi até à Catedral de Coimbra e lá, diante do altar da Virgem Maria, fez voto de castidade.

Tempos mais tarde, Anchieta entrou na recém-formada Companhia de Jesus e deslanchou na vida espiritual. Ainda noviço, sentiu-se atraído pela vida missionária. Além das orações inacianas conhecidas nos Exercícios Espirituais, que provocavam os vocacionados a um claro e forte ardor missionário, Anchieta ouvia, durante as refeições, as leituras das cartas daqueles jesuítas que trabalhavam no Brasil e nas Índias. Certamente, os escritos de São Francisco Xavier, multiplicados e divulgados pelas casas da Companhia, falaram muito forte ao seu coração generoso. Isso deve ter-lhe servido como apelo para uma vida missionária.

No Brasil, percebendo que os índios se interessavam pelos cantos e danças dos meninos portugueses, padre Anchieta logo tratou de aprender e estudar a língua dos nativos para evangelizá-los através da música e, mais tarde, do teatro. É que o jesuíta também constatou rapidamente que os índios não queriam ouvir histórias, mas vê-las acontecer, o que fez do religioso ser considerado o primeiro teatrólogo brasileiro. Além disso, ele elaborou a “Gramática da Língua mais falada na Costa do Brasil”, isto é, a gramática tupi, facilitando extraordinariamente a evangelização.

Poderíamos escrever muito sobre a vida santa de José de Anchieta, mas vamos encerrar nosso artigo com aquele fato que nos diz bastante sobre sua fé, esperança e caridade. Quando passou cinco meses refém dos índios Tamoio em Iperoig, hoje Ubatuba, nosso evangelizador presenciou, algumas vezes, a realização do ritual antropofágico. Alguns prisioneiros foram executados dentro da festa da vingança, uma comemoração onde os guerreiros inimigos mais valentes eram mortos por outros valentes guerreiros da tribo que o aprisionara. José de Anchieta era visto como amigo dos portugueses e dos Tupi, portanto inimigo dos Tamoio.

Ao mesmo tempo, os Tamoio tratavam bem seus inimigos, destinando uma jovem índia para cuidar do prisioneiro em todos os sentidos que podemos imaginar.

Anchieta, depois de três meses, ficou sozinho. Padre Nóbrega voltou para São Vicente com o intuito de continuar tratando da paz. Foram dois meses de total solidão, com ameaças de morte e assédio sexual pelas índias. Nosso Anchieta não tinha com quem dialogar e nem como receber a força dos Sacramentos (ainda não era padre). Exatamente aí, nessa situação crítica, ele recorre a Maria Santíssima e lhe promete, se saísse casto, que escreveria a vida dela em poema. Como confiava muito em Nossa Senhora, ele não esperou acontecer sua libertação, mas começou a escrever o poema – hoje sabemos que é o maior poema mariano já escrito – na areias de Iperoig.

Anchieta foi libertado e recebeu a ordenação sacerdotal. Continuou, mais que nunca, a falar do amor de Deus e passou, como padre, a perdoar os pecados, a celebrar a Eucaristia, a visitar os doentes, a levar a paz às pessoas aflitas. Foi o grande sacerdote. Quando morreu, recebeu, do bispo que presidiu seus funerais, o título de “Apóstolo do Brasil”.

Todos os brasileiros da época de Anchieta receberam dele sua atenção sacerdotal: indígenas, brancos e negros. Negros, sim. Temos três cartas em que Anchieta relata o trabalho com os negros da Guiné, enumerando os que chegaram naqueles anos, o dos que foram batizados, que tiveram a união matrimonial abençoada, ouvidos em confissão. Enfim, foi feito, também com eles, um trabalho inédito catequético e pastoral.

Anchieta sendo canonizado, será para todos nós brasileiros, não importando a raça da qual descendemos, um momento de profundo júbilo. Será a oficialização de que em nossa origem como nação está um santo, um homem de Deus. Não serão apenas os católicos que se alegrarão, mas todos. Anchieta simboliza fraternidade, doação, respeito à singularidade das pessoas, fé em Deus e serviço ao próximo. Esses são alguns dos adjetivos que qualificam aquele que está no início de nossa cultura brasileira. Na origem desta selva de pedra chamada São Paulo, em que Deus habita já desde antes de sua fundação.

Artigo publicado no Jornal O São Paulo, 
Rafael Alberto e Pe. César Moreira, SJ