Falta diálogo e articulação política nas questões de imigração

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Entrevista com o Pe. Paolo Parise
Publicado em: 18/06/2015 - 14:15
Créditos: Edição nº 3056 do Jornal O SÃO PAULO – página 15

Grupos de haitianos e de outras nacionalidades não param de chegar ao Brasil, o que amplia a necessidade de uma resposta das autoridades brasileiras para as questões migratórias. Trabalhando na linha de frente de acolhida de imigrantes, o Pe. Paolo Parise, coordenador da Missão Paz, explica ao O SÃO PAULO os desafios diários dessa atividade mantida pelos Missionários de São Carlos Borromeu, Scalabrinianos.

O SÃO PAULO - Qual a atual situação dos haitianos em São Paulo?

Pe. Paolo Parise - Todo esse fluxo, que foi ajudado pela postura de abertura do Brasil em relação aos haitianos, graças ao visto humanitário, foi uma ação muito boa, louvável, que facilitou a entrada aos haitianos, um povo imigrante por tradição. Para ter uma ideia, há mais de 1 milhão de pessoas fora do Haiti. Foi um grande gesto de humanidade, porém, não se pensou nas consequências. É preciso planejar. Se fez uma boa ação ao abrir as portas, mas não se percebeu que isso cria demandas de serviços de acolhida, cursos do idioma português, mecanismos de integração Criou-se uma bola de neve que encontrou o governo despreparado. Algumas coisas começaram a surgir. Em 2014, foi criado em São Paulo um abrigo emergencial, mas a Igreja Católica já fazia isso desde 2010, em Manaus, Cuiabá, Rio de Janeiro... O número de vistos dados pela embaixada em Porto Príncipe [capital do Haiti] é pequeno em relação à grande demanda. Isso criou um fluxo e os “coiotes” se aproveitam e exploram os migrantes cobrando 4 mil dólares em média pela viagem.

Qual a atuação da Igreja nesse contexto?

A Congregação dos Scalabrinianos se “arrebentou” para tentar acolher esses haitianos, desde Manaus até Curitiba. A ação da Igreja quase que substituiu a ação do Estado. O Estado tem que se mexer mais, não pode delegar que a Igreja faça o que é papel dele.

Há articulação das esferas federal, estadual e municipal nesta questão?

Não. Um faz uma coisa, outro faz outra, um outro não dialoga... Ano passado, em agosto, em um seminário, foram assinar um termo de compromisso o ministro da Justiça, o representante do governo estadual e um representante do municipal. Foi uma foto bonita. Mas não mudou nada, aconteceu tudo igual antes. Está faltando diálogo, articulação política.

Não é um exemplo a Itália, mas quando deslocam as pessoas que chegam a Lampedusa, eles avisam as outras regiões, planejam lugar de chegada, onde vão ficar e tudo mais. Entendo o Estado do Acre que tem uma dificuldade, mas o Governo Federal não tem somente que repassar verbas, mas sim pensar em um lugar de destino. Nesse ponto, acredito que falta diálogo. Conversei com as pessoas do Acre e elas desabafam que a situação é muito complicada, seja pela quantidade de imigrante que está chegando, seja pela população que muitas vezes tem manifestado muita xenofobia porque dizem: “vou no hospital está cheio de imigrante, vou no banco está cheio de imigrante”.

Qual sua avaliação sobre a política migratória do Brasil?

Estamos assistindo a um problema estrutural nos últimos anos que é o Estatuto do Estrangeiro, defasado, é da época da ditadura militar. Estamos atrasados, o atual Estatuto do Estrangeiro é velho, anti-imigrante, antidignidade do ser humano e olha o imigrante como ameaça. O novo paradigma deveria ser o imigrante como ser humano, com seus direitos garantidos. É essa mudança que esperamos que aconteça. Além do Estatuto, há o problema das políticas. A plataforma legal não é garantia de fazer uma política migratória boa, às vezes, não há diálogo. Falta uma política migratória municipal, estadual e nacional bem articulada.

Há uma pressão sobre o poder púbico?

Trabalhamos em rede, em mais de dez redes. Junto com a advogada, vou ao Ministério do Trabalho, Ministério da Justiça, conversamos na Prefeitura, dialogamos com secretarias do Estado de São Paulo. Pressionamos a Prefeitura, em outubro de 2014, para ampliar o espaço de acolhida, mas até agora ainda não tivemos resposta.

Como é a contratação de mão de obra dos imigrantes?

Antes de ser contratados, os imigrantes passam por uma palestra para saber seus direitos e deveres. Também o empresário passa por uma triagem e um esclarecimento de que tem de assinar a carteira e um compromisso ético com CNPJ da empresa e tudo. Infelizmente, depois da contratação, só conseguimos visitar uma em cada oito empresas. Não dá para visitar todas. Só em 2014, foram 816 empresas que contrataram das 2 mil que vieram aqui, ou seja, apenas um terço contrata porque as outras não querem assinar carteira e aí já são excluídas do processa O problema é que essas empresas não selecionadas ficam nas ruas próximas à Missão contratando, e ainda dizem que contrataram aqui. Tivemos um processo em que a empresa foi acusada de trabalho escravo e disse que contratou na Missão Paz, mas tínhamos os documentos de que ela não havia contratado ninguém e nem assinado o termo ético.

Uma ação conjunta da América Latina nessa acolhida aos imigrantes não seria positiva?

Sim. Deve haver uma ação em conjunto. Sentar e encontrar soluções. Ouvimos muito sofrimento dos imigrantes que passam pela rota Equador - Peru até chegar ao Acre. Nessa rota, os protagonistas são os coiotes, porque os países não estão sendo. Eles [os coiotes] estão tirando dinheiro, criando cárcere privado, trabalham com drogas e com os imigrantes. Essa rota da imigração ilegal não é mais de haitianos, é de dominicanos, senegaleses... Eles deixam a pessoa na prisão até que a família libere o dinheiro.

O senhor teme que políticas intransigentes de imigração, como acontece no Reino Unido, possam ser aprovadas no Brasil?

Sim, o medo é que aconteça. Mas já na área de imigração do aeroporto de Guarulhos existe algo similar, em escala menor. Há histórias de imigrantes que ficam retidos por semanas. Tivemos um caso de uma família em que a esposa e o filho passaram pela imigração e o marido foi enviado novamente para a Nigéria.

O como o senhor avalia a missão de paz no Haiti?

A reconstrução internacional do Haiti e a força tarefa de paz não estão dando certo, porque a reconstrução não está acontecendo. Eles continuam migrando. E existe outro problema: precisa haver uma ação de esclarecimento. Está sendo passada uma imagem que não é real do Brasil. Numa noite dessas, em uma roda de conversa, um dos imigrantes me contou que falam no Haiti que você chega no Brasil e começa a trabalhar.

Como o senhor vê a cobertura da mídia em relação aos haitianos no Brasil?

Não podemos generalizar. Temos jornalistas e meios de comunicação muito bons, mas há muitos sensacionalistas, sem nenhuma dignidade, como o caso da foto feita por um jornalista de um grande veículo de comunicação. Eu soube que o fotógrafo entrou no banheiro sem pedir autorização e saiu tirando fotos. A impressão da foto é que o mictório é utilizado para urinar e a pessoa estava tomando banho, mas foi feito um acordo entre os próprios haitianos para que aquele espaço não fosse usado para urinar e apenas para lavar roupas. Passa uma imagem de que foi um furo, mas é uma ideia errada, preconceituosa, um corpo negro dando uma ideia de escravidão e de desrespeito da dignidade humana.

De que tipo de ajuda a Missão Paz precisa?

Ter iniciativas de grupos e pessoas que venham aqui ao meio dia com lanche aos migrantes. Estamos disponibilizando o jantar, mas não o almoço. É possível acompanhar o que fazemos por meio do site www.missaonspaz.org. Ficamos receosos em falar em dinheiro, mas, para se ter uma ideia, somente de água estamos pagando R$ 4 mil, e de luz R$ 3 mil. Quem quiser ajudar é só entrar em contato conosco.

Edcarlos Bispo