Sinto falta de caminhar pelas ruas

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Entrevista Papa ao diário argentino “La Voz del Pueblo”
Publicado em: 09/06/2015 - 13:00
Créditos: Edição nº 23 do Jornal L’OSSERVATORE ROMANO – páginas 10-11

Apresentamos uma entrevista concedida recentemente pelo Papa e publicada no diário argentino “La Voz del Pueblo” de Tres Arroyos (Buenos Aires) do dia 24 de Maio

Sozinho com o Papa Francisco na sua residência de Santa Marta, no Vaticano. Um encontro franco e histórico, no qual uma das personalidades mais importantes do mundo falou da sua vida pessoal. “Gostaria de ser recordado como uma boa pessoa”, e admite do fundo do coração: “As pessoas fazem-me bem”. Numa pequena e simples sala da residência de Santa Marta, no Vaticano, o Papa Francisco recebeu “La Voz del Pueblo”, sem a presença de terceiros e com uma só condição: “A única coisa que te peço é que sejas correcto”, disse antes que eu ligasse o gravador. Depois, nos quarenta e cinco minutos que durou o nosso encontro, confessou-me que noutros tempos sentia “pânico diante dos jornalistas”. É claro que se trata de um trauma superado. Jorge Mario Bergoglio teve a coragem de percorrer a sua vida pessoal, respondendo de bom grado e acompanhando as palavras com gestos quando a pergunta o entusiasmava, mas também de forma seca e pungente face a uma pergunta cuja resposta poderia suscitar muito clamor fora dos muros do Vaticano. A solidão, a pizza, o medo da dor física, o seu magnetismo, as coisas que o fazem chorar, as pressões, a televisão, o valor das utopias... Foram estes alguns dos temas tratados durante a nossa conversa, que teve como ponto de partida a sua nomeação.

Sonhava ser Papa?

Não! Nem sequer ser presidente da República ou general do exército. Há quem tenha este desejo. Eu não.

Quando fazia carreira no serviço episcopal nunca imaginou esta possibilidade?

Depois de ter ocupado durante quinze anos os lugares de comando aos quais me destinaram, tinha voltado ao ponto de partida, a ser confessor, pároco. A vida de um religioso, de um jesuíta, muda de acordo com as necessidades. E em relação à possibilidade, eu estava na lista dos papáveis no outro conclave. Mas desta vez, a segunda, considerando a minha idade, 76 anos, e também que certamente havia pessoas mais válidas... Portanto, ninguém indicava o meu nome, ninguém. Além disso, diziam que eu era um kingmaker (um grande eleitor, como são chamados aqueles cardeais que devido à sua experiência e autoridade têm mais influência do que outros sobre o resultado eleitoral) e podia influenciar o voto dos cardeais latino-americanos. A tal ponto que os jornais não publicaram nenhuma fotografia minha, ninguém pensava em mim. Os bookmakers de Londres consideravam- me no 46º lugar (dá uma boa risada). Nem sequer eu pensava em mim, não me vinha à mente.

Não obstante em 2005 tenha sido o segundo mais votado depois de Ratzinger...

Isto são coisas que se dizem. O dado certo é que pelo menos na outra eleição eu aparecia nos jornais, estava entre os papáveis. Dentro era claro que devia ser Bento, que foi votado quase por unanimidade, e isto agradou-me muito. A sua candidatura era clara, na segunda eleição não havia um candidato claro. Havia vários possíveis, mas nenhum forte. Por isso vim a Roma com o que tinha vestido e com um bilhete de regresso para o sábado à noite, para poder estar em Buenos Aires no domingo de Ramos. Tinha até deixado a minha homilia preparada na mesa. Nunca pensei que teria acontecido.

E quando foi eleito o que sentiu?

Antes da eleição definitiva senti muita paz. “Se Deus o quer...”, pensei. E senti-me em paz. Quando eram feitos os escrutínios, que são eternos, eu recitava o rosário, tranquilo. Estava ao meu lado o meu amigo, Cardeal Cláudio Hummes, que numa votação anterior à definitiva me disse: “Não te preocupes, é assim que age o Espírito Santo” (riu de novo).

Aceitou imediatamente?

Levaram-me à sacristia, trocaram-me a túnica, e imediatamente em ação. Naquele ponto disse o que me veio à mente.

Então foi algo espontâneo.

Sim, sentia-me muito tranquilo e disse o que me vinha do coração.

Reconhece o magnetismo que gera nas pessoas? Digo isto devido àquele algo mais que a sua figura confere à investidura papal.

Sim... sei que as pessoas (hesita, fica em silêncio). Primeiro não compreendia o motivo. Alguns cardeais disseram-me que as pessoas dizem “compreendemo-lo”. Claro, nas audiências, no que digo, eu procuro dar exemplos como hoje (na audiência geral da quarta-feira) quando contei o episódio da quarta classe. É assim que o povo entende o que pretendo dizer. Como quando falei do caso dos pais separados, que usam os filhos como reféns, algo muito triste, fazem deles vítimas, o pai fala mal da mãe ou vice-versa, e o menino fica muito confundido. Procuro ser concreto e aquilo a que tu chamas magnetismo alguns cardeais dizem-me que está relacionado com o fato de que o povo me compreende.

Gosta da audiência geral?

Sim, gosto no sentido humano e espiritual, em ambos os sentidos. As pessoas fazem-me bem, transmitem-me energia positiva, como se diz. É como se a minha vida se misturasse com as pessoas. Eu, psicologicamente, não posso viver sem o povo, não fui feito para ser monge, por isso vivo aqui, nesta casa (na residência de Santa Marta). É uma hospedaria, tem 210 quartos, nós que nela vivemos e trabalhamos na Santa Sé somos quarenta, os demais são hóspedes, bispos, párocos, leigos, que vêm de passagem e se hospedam aqui. E isto é muito positivo para mim. Vir aqui, comer na sala de jantar, onde há muitas pessoas, celebrar quatro dias por semana a missa na qual participa gente de fora, das paróquias... Gosto muito de tudo isto. Eu quis ser sacerdote para estar com o povo. Dou graças a Deus porque pude manter isto.

O que lhe falta da sua vida anterior à eleição como Papa?

Sair pelas ruas. Isto sim que me falta, a tranquilidade de caminhar pelas ruas. Ou ir a uma pizzaria comer uma boa pizza (ri).

Pode pedir que lha tragam ao Vaticano.

Sim, mas não é a mesma coisa, o problema é ir fora. Eu sempre andei a pé. Quando era cardeal gostava muito de caminhar pelas ruas, andar de autocarro, no metropolitano. Gosto muito da cidade, sou citadino dentro. Não poderia viver numa cidade como a tua, por exemplo, sentiria muita dificuldade... Não, Tres Arroyos não é muito pequena, sim, poderia viver nela. No campo não poderia viver.

Aqui caminha pela cidade?

Não (dá mais uma risada). Vou às paróquias... Mas não posso sair. Imagina se saio o que se desencadeia. Um dia saí de carro só com o motorista e esqueci-me de fechar o vidro, estava aberto e eu não me apercebi. E aconteceu o fim do mundo. Eu estava sentado à frente ao lado do condutor, não conseguíamos ir em frente porque o povo não nos deixava passar. Claro, encontrar o Papa pela estrada...

Isto tem a ver com o seu modo de ser.

É verdade que aqui tenho fama de indisciplinado, não sigo muito o protocolo. É muito frio, mesmo se há coisas oficiais às quais me adequo completamente.

À noite repousa, desliga a ficha?

Eu tenho um sono muito profundo, quando me deito adormeço imediatamente. Durmo seis horas. Normalmente às nove estou na cama e leio até quase às dez, quando um olho começa a lacrimejar, desligo a luz e durmo até às quatro, quando acordo sozinho, é o relógio biológico. É verdade, depois preciso da sesta. Preciso de dormir de quarenta minutos a uma hora, por isso tiro os sapatos e deito-me na cama. Também neste caso durmo profundamente, e acordo sozinho. Quando não durmo a sesta sinto falta.

O que lê antes de adormecer?

Agora estou a ler um livro sobre são Silvano do Monte Atos, um grande mestre espiritual.

Na visita a Manila no Verão passado falou da importância das lágrimas. Vossa Santidade chora?

Quando vejo dramas humanos. Como há dias, quando vi o que estava a acontecer ao povo rohingya que chega de barco às águas tailandesas; quando se aproxima da terra dão-lhe algo de comer, água, e depois deixam-no no mar. Isto comove-me profundamente, este tipo de drama. Depois, as crianças doentes. Quando vejo as que aqui chamam “doenças raras”, causadas pela desatenção pelo ambiente, sinto aperto de coração. Quando vejo aquelas criaturas digo ao Senhor: “Por que elas sim e eu não”. Também me comovo quando visito as prisões. Das três Quintas-Feiras Santas que celebrei, duas foram numa prisão, uma vez de menores e a outra em Rebibbia. E depois noutras cidades da Itália que visitei fui às prisões, comi com os presos e quando falava com eles veio-me à mente: “E pensar que também eu poderia estar aqui!”. Ou seja, nenhum de nós tem a certeza de que nunca cometerá um crime, uma ação pela qual pode acabar na cadeia. Então pergunto-me por que permitiu Deus que eu não esteja aqui. E sinto dor por eles e agradeço a Deus por não estar ali, mas ao mesmo tempo sinto que aquele agradecimento é de conveniência, porque eles não tiveram a oportunidade que eu tive de não cometer uma estupidez que me levasse para a prisão. Isto faz-me chorar interiormente. Comove-me muito.

Mas chega a chorar com lágrimas?

Em público não choro. Aconteceu-me duas vezes estar quase para chorar, mas consegui conter-me a tempo. Estava demasiado comovido, algumas lágrimas deslizaram, mas fiz de contas que não era nada e dali a pouco passei a mão na minha cara.

Porque não queria que o vissem chorar?

Não sei, tinha a impressão que devia superar aquele momento.

Em que ocasiões aconteceu?

Recordo-me de uma, da outra não. A que recordo estava relacionada com a perseguição dos cristãos no Iraque. Falava disso e comovi-me profundamente. Pensava nas crianças.

De que tem medo?

Em geral não tenho medo. Sou bastante temerário, comporto-me sem pensar nas consequências. Isto às vezes causa-me grandes dores de cabeça porque sai uma palavra a mais (ri de novo com prazer). Em relação aos atentados, estou nas mãos de Deus e quando rezo falo com o Senhor e digo-lhe: “Se tiver que acontecer, que aconteça, peço-te só uma graça, que não seja doloroso (ri), porque sou cobarde em relação à dor física. Suporto a dor moral, mas a física não. Sou muito cobarde neste aspecto, não tenho medo de uma injeção, mas prefiro não ter problemas com a dor física. Sou muito intolerante, penso que é uma coisa que me ficou depois da operação ao pulmão que fiz quando tinha 19 anos.

Sente-se sob pressão?

As pressões existem. Cada pessoa de governo sente pressões. Neste momento o que me pesa mais é a grande quantidade de trabalho que há. Estou a seguir um ritmo de trabalho muito intenso, é a síndrome do fim do ano escolar, que aqui acaba no fim de Junho. E então acumulam-se muitas coisas, e há problemas... E depois há complicações que te causam, o que disse, ou não disse... Também os meios de comunicação pegam numa palavra e descontextualizam-na. Há dias na paróquia de Ostia, perto de Roma, estava a saudar as pessoas, tinham disposto os idosos e os doentes no ginásio. Estavam sentados e eu passava e saudava-os. Então disse: “Reparai que estranho, aqui onde brincam as crianças estão os idosos. Compreendo-vos, porque também eu sou idoso e tenho os meus achaques, sou um pouco doente”. No dia seguinte escreveram nos jornais: “O Papa confessou que está doente”. Contra este inimigo, nada se pode.

Está a par de tudo o que se publica?

Não. Leio só um jornal, “La Repubblica”, que é um jornal para a classe média. Faço-o de manhã e não emprego mais de dez minutos. Não vejo televisão desde 1990 (fica em silêncio antes de responder). Trata-se de uma promessa que fiz à Virgem do Carmelo na noite de 15 de Julho de 1990.

Por um motivo particular?

Não, pensei: “não é para mim”.

Não vê os jogos do San Lorenzo?

Não, não vejo nada.

Como toma conhecimento dos resultados?

Há um guarda suíço que todas as semanas me dá os resultados e a classificação.

Entre os Papas, Vossa Santidade seria um Messi ou um Mascherano?

Não saberia, porque não sei distinguir os dois estilos, não vejo os jogos. Messi veio aqui duas vezes, mas nada mais, nunca o vi jogar.

Navega na internet?

Não. E conceder entrevistas, nunca. Agora consegui, é o estado de graça. Antes sentia pânico só com a ideia de enfrentar um jornalista.

Como vê a Argentina do Vaticano?

Como um país com muitas possibilidades e tantas oportunidades perdidas. Como dizia o Cardeal Quarracino. E é verdade. Somos um país que perdeu tantas oportunidades ao longo da sua história. Alguma coisa não funciona, com toda a riqueza que temos. Como a história dos embaixadores dos países que se foram lamentar com Deus porque tinha dado tantas riquezas aos argentinos e a eles só uma, ou a agricultura ou as minas. Deus ouviu-os e depois respondeu: “Não, desculpai, para compensar dei-lhes os argentinos”.

Segue a política argentina?

Não, minimamente, deixei de receber políticos porque me apercebi que alguns usavam isso e a fotografia comigo, mesmo se também é verdade que outros nem sequer disseram que estiveram aqui e não fizeram fotografias. Mas para evitar tudo isto, políticos em audiências particulares, não. Se vêm, vão à audiência geral, saúdo-os ali. Não sei como estão a correr as eleições nem sequer quem são os candidatos. Imagino quais são os principais, mas nem sequer sei como estão as tensões. Sei que nas Paso [Primárias abertas simultâneas obrigatórias] de Buenos Aires, ganhou a Pro [Proposta republicana] porque o vi no jornal, foi publicado até por “La Repubblica”.

Gosta que o definam o Papa pobre?

Se depois acrescentarem outra palavra, sim. “Pobre homem” por exemplo (ri de novo com gosto). A pobreza é o centro do Evangelho. Jesus veio para pregar aos pobres, se tiras a pobreza do Evangelho, não compreendes nada, priva-lo do miolo.

Não é uma utopia pensar que se pode desenraizar a pobreza?

Sim, mas as utopias fazem-nos ir em frente. Seria triste se um jovem ou moça não as seguissem. Há três coisas que todos devemos ter na vida; memória, capacidade de ver o presente e utopia para o futuro. Não se deve perder a memória. Quando os povos perdem a sua memória, há o grande drama de descuidar os idosos. Capacidade de hermenêutica diante do presente, interpretá-lo e saber onde é preciso ir com aquela memória, com as raízes que tenho, como agir no presente, consiste nisto a vida dos jovens e dos adultos. E o futuro, nele está, sobretudo a vida dos jovens e das crianças. Com memória, com capacidade de gestão do presente, de discernimento e utopia em relação ao futuro, porque nele se inserem os jovens. Por isso o futuro de um povo manifesta-se no cuidado dos idosos, que são a memória, e das crianças e dos jovens, que são o futuro e dá-la aos filhos. Certa vez eu li algo muito bonito: “O presente, o mundo que recebemos, não é só uma herança dos idosos, mas antes um empréstimo que os nossos filhos nos fazem para que lho restituamos melhor”. Se eu cortasse as minhas raízes e perdesse a memória, aconteceria comigo o que se verifica com cada planta, morreria; se eu viver unicamente um presente sem olhar em previsão do futuro acontecer-me-á o que acontece com qualquer mau administrador, que não sabe fazer projetos. A poluição ambiental é um fenômeno deste tipo. As três coisas devem caminhar juntas; quando falta uma o povo começa a decair.

Quais são os piores males que afligem o mundo de hoje?

Pobreza, corrupção, tráfico. Talvez me engane na estatística, mas o que me respondes se te pergunto qual é o item que está depois da alimentação nas despesas do mundo, o vestuário e a medicina? Em quarto lugar está a cosmética e em quinto os animais domésticos. Isto é grave. O cuidado do animal doméstico é como um amor um pouco programado, ou seja, posso programar a resposta amorosa de um cão ou de um gatinho, e não preciso fazer a experiência de um amor de reciprocidade humana. Estou a exagerar, não deve ser tomado à letra, mas é motivo de preocupação.

Por que repete sempre “rezai por mim”?

Porque preciso disso. Tenho necessidade de que a oração do povo me ampare. É uma exigência interior, devo ser apoiado pela oração do povo.

Como gostaria de ser recordado?

Como uma boa pessoa. Que digam: “Era uma boa pessoa que procurou fazer o bem”. Não peço outra coisa.

Juan Barretta