Homilia de Dom Tarcísio Scaramussa em sua posse do ofício de Bispo Auxiliar

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03/05/2008 - 00:00

 

Publicamos na íntegra, a seguir, a homilia de Dom Tarcísio Scaramussa

Estamos celebramos a solenidade da Ascensão do Senhor. A circunstância de minha acolhida como Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo e do envio para o ministério episcopal na Região Sé é um acontecimento que recebe uma luz especial desta festa e da Palavra de Deus deste dia. A Ascensão nos recorda que Jesus voltou glorificado para o Pai, após realizar a sua vontade, gastando a sua vida a serviço do Reino. A Ascensão nos recorda, ao mesmo tempo, que Jesus entrega a seus discípulos a continuidade de seu projeto libertador, e isto continua válido e atual até os nossos dias.

Para mergulhar mais profundamente neste mistério, podemos considerar que Jesus nos convocou aqui hoje, da mesma forma que reuniu os discípulos outrora no monte da Galiléia.
Monte e Galiléia são duas realidades que têm um significado particular no Evangelho segundo Mateus, e os judeus-cristãos, que eram os destinatários desta catequese naquele tempo, entendiam e interpretavam muito bem sua mensagem.
O monte é o lugar das grandes ações e revelações de Jesus, segundo o evangelista Mateus. É num monte que Jesus vence a última tentação, num monte faz o discurso das bem-aventuranças, num monte multiplica os pães, num monte se recolhe para passar noites em oração ao Pai, num monte se transfigura, num monte envia os discípulos em missão, antes de subir aos céus. Dessa forma, Mateus deixava claro que Jesus é o novo Moisés, é o Mestre da Nova Lei, como Moisés o foi da antiga. A entrega da missão aos discípulos é assim um ato solene que marca também a nova forma de presença de Jesus na Igreja, pela ação do Espírito Santo.

A Galiléia foi a região na qual Jesus viveu quase toda a sua vida, onde começou a anunciar o Evangelho do Reino, onde chamou os primeiros discípulos, onde marcou o encontro final com eles após a Ressurreição. Era uma região próspera e bem povoada, e a sua posição geográfica a tornava um ponto de encontro de muitos povos. Por isso também se distinguia da Judéia por sua cultura mais pluralista, e por uma vivência religiosa menos rígida em comparação com a prática da Lei dos judeus de Jerusalém e da Judéia. Era até chamada por estes de a Galiléia dos pagãos, da qual não podia sair nada de bom. Fica bem evidente assim que a Galiléia significa para Mateus que o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal, e destina-se a todos, judeus ou pagãos.

Esta configuração social e cultural da Galiléia é muito sugestiva para pensar a evangelização num contexto como a realidade da cidade de São Paulo. É um lugar de encontro de povos vindos de várias partes do mundo, de várias regiões do Brasil, criando um contexto pluralista de culturas, crenças e religiões. É uma realidade urbana próspera e ao mesmo tempo cheia de conflitos e de desafios, e por isso mesmo necessitada da presença de Jesus e de seu Reino, lugar privilegiado de missão para os discípulos de Jesus. 

O que acontece neste encontro marcado de Jesus com os discípulos numa montanha da Galiléia?

Primeiro os discípulos se prostram diante de Jesus ressuscitado, reconhecendo-o como o seu Senhor e mestre, aquele que possui todo o poder sobre o mundo e sobre a história, e que ao mesmo tempo é o “Deus-conosco” todos os dias de nossa vida. A liturgia nos levou a fazer o mesmo, propondo-nos a oração do salmo 47: “Povos todos do universo, batei palmas, gritai a Deus aclamações de alegria!
Porque sublime é o Senhor, o Deus altíssimo, o soberano que domina toda a terra”.  Em sua carta aos Efésios, Paulo convida os cristãos a contemplar a grandeza da glória de Cristo, porque assim podem experimentar o poder de Deus Pai que transforma a vida de seus filhos.

A missão evangelizadora só pode ser entendida e assumida por alguém que foi ao monte para encontrar-se com Jesus ressuscitado. Os bispos em Aparecida insistem que “o acontecimento de Cristo é, portanto, o início desse sujeito novo que surge na história e a quem chamamos discípulo”. E citam uma frase de Bento XVI na encíclica “Deus é Caridade”: “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas através do encontro com um acontecimento, com uma pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”. E concluem: “Isso é justamente o que, com apresentações diferentes, todos os evangelhos nos têm conservado como sendo o início do cristianismo: um encontro de fé com a pessoa de Jesus” (Cf. DA 243). O mesmo documento insiste que o bispo, como Pastor, servidor do Evangelho, é consciente de ser chamado a viver o amor a Jesus Cristo e à Igreja na intimidade da oração e da doação de si mesmo aos irmãos e irmãs, a quem presidem na caridade (Cf. DA 186). João Paulo II, na Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores Gregis (2003) lembrava que “um Bispo só pode considerar-se verdadeiro ministro da comunhão e da esperança para o povo santo de Deus, quando caminhar na presença do Senhor. Na realidade, não é possível estar ao serviço dos homens, sem primeiro serem ‘servos de Deus’. E não podem ser servos de Deus, se não forem ‘homens de Deus’. O Pastor deve ser homem de Deus; a sua vida e o seu ministério estão inteiramente sob a sua glória divina, recebendo luz e vigor do mistério sublime de Deus” (Pastores Gregis, n. 13).

Olhando os onze discípulos prostrados diante dele, Jesus reafirma a autoridade que lhe foi dada no céu e sobre a terra, e os envia para que façam todos os povos discípulos seus, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que lhes havia ordenado. Da união com o Senhor, brota também a consciência da missão. Os discípulos não estarão sozinhos. O próprio Jesus que envia garante continuar com eles todos os dias, até o fim do mundo. Segunda a narrativa dos Atos dos Apóstolos, Jesus assegura que os discípulos receberão o poder do Espírito Santo, para que sejam suas testemunhas em toda a parte. Em seguida, “foi levado ao céu à vista deles, e uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não podiam mais vê-lo”.

Esta imagem de Jesus encoberto pela nuvem na Ascensão é emblemática, pois sugere o mistério do Deus escondido e presente. O sugestivo lema do centenário nos convida a proclamar que “Deus habita esta cidade”, desvelando toda nuvem que impede de reconhecer a sua presença. Como os apóstolos continuavam estáticos a olhar para o céu, alguém os despertou com uma pergunta: “por que ficais aqui parados, olhando para o céu? Esse Jesus, que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu”. O livro dos Atos foi escrito justamente num momento de desânimo das comunidades, de certa mediocridade, de falta de entusiasmo e de empenho. Os cristãos são convidados a redescobrir o seu papel no mundo, conscientes de que a missão agora está em suas mãos. São convidados a seguir os passos de Jesus, entregando suas vidas a serviço do Reino. São convidados a serem realmente discípulos missionários do Senhor. O encontro autêntico com Jesus não aliena o discípulo numa contemplação intimista do Senhor, mas o lança como  missionário para o meio do mundo. O discípulo de Jesus é sensível à realidade da pobreza, do sofrimento das pessoas, do vazio e da solidão, da  ausência de Deus, de tudo o que ameaça e sufoca a vida, da violência, especialmente aos mais indefesos, como as crianças, os pobres, os idosos. O discípulo de Jesus se empenha para repetir os seus gestos, colocando-se ao lado de todos os necessitados, anunciando-lhes a Boa Nova do Reino, encontrando Jesus presente neles. Na realização desta missão, o discípulo desvelará com atos o Deus escondido que habita esta cidade.

A Igreja escolheu a data da Ascensão para comemorar todos os anos a Jornada Mundial das Comunicações Sociais. É uma escolha que reafirma este aspecto fundamental da missão em nossos dias marcados pela cultura urbana. Usando a simbologia de Mateus, podemos afirmar que o mundo da comunicação é hoje um monte e púlpito para anunciar as bem-aventuranças para toda a Galiléia, que é símbolo de todas as gentes.  O tema deste ano fala do desafio de superar uma comunicação a serviço de interesses e ideologias, para realizar uma comunicação a serviço da verdade, e é assim enunciado: “Os meios de comunicação social: na encruzilhada entre protagonismo e serviço. Buscar a verdade para partilhá-la”. A mensagem do papa Bento XVI para este dia conclui citando o grande comunicador João Paulo II: “Invocamos o Espírito Santo para que não faltem comunicadores corajosos e testemunhas autênticas da verdade que, fiéis ao mandato de Cristo e apaixonados pela mensagem da fé, ‘saibam tornar-se intérpretes das exigências culturais contemporâneas, comprometendo-se a viver esta época da comunicação, não como um tempo de alienação e de confusão, mas como um período precioso para a investigação da verdade e para o desenvolvimento da comunhão entre as pessoas e entre os povos’”.

Há ainda um outro aspecto da Ascensão que é fundamental para os nossos dias. Ouvimos de São Pedro domingo passado que devemos estar preparados para dar a razão da nossa esperança. E hoje São Paulo, escrevendo aos Efésios em meio às dificuldades da prisão, anima-os, invocando o Pai para que eles abram o coração para reconhecer a ação poderosa de Deus em suas vidas, e a conhecer a esperança à qual foram chamados, a riqueza da glória que os espera. A contemplação da Ascensão tem certamente esta força mística: Jesus Cristo cumpriu sua missão, é elevado à glória do Pai, que pôs todas as coisas a seus pés. Ele é “a cabeça da Igreja, que é seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal”. Como fazemos parte do corpo de Jesus, temos certeza da glória futura, de uma vida plena de comunhão com Deus, mas também a certeza que já somos vitoriosos sobre o mal e a morte, e que o seu poder já está atuando muito além do que podemos imaginar e perceber.
Esta consciência dá vigor à ação do discípulo, e fortalece nas dificuldades que deve enfrentar em sua missão. Mais uma vez a Palavra revela a íntima união da comunidade com Cristo, que é cabeça da Igreja.

A celebração da Ascensão do Senhor traz assim tanta luz para este momento em que o Senhor me confia esta missão de Pastor em sua Igreja, como bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo. Todo chamado é uma história de amor. Amor de Deus que escolhe e chama de forma gratuita. Amor do discípulo que responde positivamente ao dom de Deus, porque o Senhor é o sumo bem ao qual pode aspirar o coração humano. Espelhando-se no amor de Deus, o discípulo chamado se dispõe a entregar completamente sua vida. Assim o fez nosso padroeiro Paulo, entusiasta apóstolo do evangelho, ardoroso pastor que nos inspira intrepidez missionária no areópago da grande cidade.

Como primeiro ato celebrativo após esta entrega da nova missão, participarei amanhã da peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, juntamente com o povo de nossa Arquidiocese de São Paulo. Consagrarei a ela o meu ministério. Nela o Verbo se encarnou, “e habitou entre nós”. Com ela a Igreja iniciante recebe o Espírito Santo em Pentecostes, nova forma de presença de Jesus Cristo. Mãe da Igreja, nossa mãe, acompanhai vossos filhos na missão.

Dom Tarcísio Scaramussa
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo
Vigário Episcopal da Região Sé

São Paulo, 03 de maio de 2008