A Doutrina Social da Igreja para as práticas cotidianas de misericórdia

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Em São Paulo, Congresso Internacional de DSI destaca o chamado à permanente atenção aos mais frágeis da sociedade.
Publicado em: 06/10/2016 - 17:30
Créditos: Fernando Geronazzo / Jornal O SÃO PAULO - Fotos: Luciney Martins

“A Doutrina Social da Igreja e o cuidado misericordioso dos mais frágeis” foi o tema do II Congresso Internacional de Doutrina Social da Igreja (DSI), realizado numa parceria entre a PUC-SP e o Centro Universitário Salesiano (Unisal), em Santana, na zona Norte de São Paulo, entre os dias 28 e 30 de setembro. 

O evento contou com a participação de estudantes das duas instituições organizadoras, integrantes das pastorais e especialistas da Argentina, Uruguai, México, Haiti, Espanha, Colômbia e Chile, para discutirem sobre temas como ideologia midiática, trabalho escravo, migração e tráfico de pessoas. 

Rosana Manzini, professora da PUC-SP, diretora de operações do Unisal, e uma das organizadoras do Congresso, explicou que a abordagem desses temas foi solicitada pessoalmente pelo Papa Francisco em um encontro com a mesa-diretiva da Rede Latino-Americana de Pensamento Social da Igreja (RedLapsi), em 2015. 

Desejo do Papa
Na abertura do evento, o Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da PUC-SP, ressaltou que as instituições católicas de ensino devem ser “caixas de ressonância da Doutrina Social da Igreja”, como contribuição para a sociedade e para a cultura. 

Dom Odilo destacou, ainda, que o Ano Santo extraordinário da Misericórdia convida a Igreja a refletir sobre a relação entre misericórdia e justiça. “Deus é justo, mas também é misericordioso. Ambas categorias são partes da essência de Deus”, disse. “Para quem está em situação de fragilidade, existe a necessidade de ir além da justiça fria para usar de misericórdia, ir ao encontro e suas necessidades para além daquilo que seria a mera medida da justiça”, acrescentou.  

O que é DSI?
Padre Marcial Maçaneiro, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e professor da PUC do Paraná, explicou ao O SÃO PAULO que a Doutrina Social da Igreja é um conjunto de princípios doutrinais, aplicados à luz da Palavra de Deus, para as várias situações sociais. 
“Esses princípios não são apenas teóricos. Eles são luzes para ação da Igreja. Alguns vão falar da prevenção dos problemas sociais, outros vão falar da solução dos problemas sociais, outros vão criar grandes critérios para a Igreja pensar como fica a questão do direito, da justiça, da ordem pública, da economia, da partilha de bens”, acrescentou.

Economia de exclusão
A primeira conferência do evento foi proferida pelo bispo de Yucatan, no México, e presidente da Comissão de Pastoral Social do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), Dom Gustavo Rodrígues Vega, que apresentou as principais urgências pastorais do Papa Francisco em seus documentos, e que, segundo ele, desafiam as ações pastorais da Igreja.  A primeira dessas urgências é a centralidade da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da DSI. “O Papa Francisco alerta: ‘Toda a violação da dignidade do ser humano se configura como violência ao criador do homem’”, recordou o Bispo. 

Francisco censura a economia de exclusão que impossibilita o acesso das pessoas a uma vida digna. “Essa economia mata. Hoje tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte. Como consequência dessa situação, grandes massas da população são marginalizadas, sem trabalho, sem horizontes”, acrescentou Dom Gustavo.

O Bispo recordou, ainda, que o Pontífice faz uma contundente negação ao que chama de “nova idolatria do dinheiro”, que faz com que o ser humano seja considerado um bem de consumo que pode ser usado e logo descartado. Por fim, Dom Gustavo ressaltou que, além de uma crise econômica, o mundo padece de uma profunda crise antropológica. 

Ideologia midiática

Doutora em Ciências Sociais com especialização em Comunicação, a diretora da Escola Social do Centro Bíblico Teológico e Pastoral para a América Latina, Susana Nuin Nuñez, alertou para um cenário no qual as relações de poder da sociedade incluem a mídia, destacando que os conglomerados que detêm a informação são também os que detêm força financeira e, nesse sentido, a informação tem sido tratada como produto ou mercadoria, de modo que possa ser agendada, filtrada e editada. 

Além de apontar os monopólios de mídia que atendem aos interesses de grandes empresas, a especialista também reconheceu a existência de monopólios estatais, citando o caso da Venezuela. Para ela, poucas instituições no mundo geram notícias e, muitas vezes, o acesso às suas fontes de informação são negados. Em consequência disso, podem ser postos em risco a dignidade da pessoa humana, o direito e o dever de participação cidadã e princípios como os de solidariedade e bem comum.  
Para se contrapor a esse monopólio, Susana propôs maior participação cidadã por meio de modos alternativos de comunicação, especialmente nas redes sociais, lugares nos quais as pessoas possam ter acesso a outras fontes de informação e se tornem sujeitos de comunicação e não somente receptores.  

Tráfico humano

Há 13 anos representando os Salesianos de Dom Bosco como consultor junto à ONU para as questões de pobreza e tráfico humano, o Padre Thomas Brennan apresentou a realidade dessa que é considerada a atividade mais articulada do crime organizado no mundo.
“O tráfico de pessoas é uma forma de escravidão moderna, é a maior forma de desumanização”, afirmou. “Quando falamos sobre o tráfico humano, precisamos pensar no ato em si, nos meios para sua realização e na finalidade dele”, explicou, destacando, ainda, que fica explícito que o tráfico tem a ver com a exploração sexual, incluindo prostituição alheia, trabalho forçado, escravidão e práticas análogas ao trabalho escravo, além da extração de órgãos. “O silêncio sobre essa realidade deve ser uma fonte de vergonha para todos nós”, acrescentou o Sacerdote, ressaltando o papel dos grupos religiosos justamente no sentido de ajudar as pessoas a saírem do que ele chama de “cegueira coletiva” sobre o tráfico humano.  Em 2007, uma série de resoluções da ONU foram definidas para iniciativas globais de luta contra o tráfico humano numa forte colaboração entre sociedade civil e governos para prevenir, processar e proteger. 

Corrupção sistêmica

Padre Thomas reforçou que nenhuma ação contra a realidade de tráfico humano será eficaz enquanto não acontecer um duro combate à corrupção sistêmica que alimenta essa atividade. “Enquanto não houver mecanismos jurídicos corretos nos estados para o combate à corrupção, ainda acontecerá o aumento, claro, desse crime.”  “Neste momento, temos aproximadamente 21 milhões de pessoas sob algum tipo de tráfico e muitos são menores de idade, com menos de 15 anos”, informou o Sacerdote. 
Por fim, Padre Thomas salientou que a Igreja e demais atores da sociedade civil, pelo fato de terem contato direto com as pessoas e comunidades afetadas pelo tráfico humano, estão na melhor posição para colaborar no combate desse mal, uma vez que lidam com as pessoas, não com estatísticas. “Somos os ouvidos, os olhos, a voz das vítimas e trabalhamos para superar todas as forças da sociedade que levam à desumanização do outro.”


(Colaborou Júlia Cabral)