Livres para crer

A A
Relatório aponta ameaças à liberdade religiosa em diferentes partes do mundo
Publicado em: 18/11/2016 - 19:00
Créditos: Edcarlos Bispo e Nayá Fernandes / Jornal O SÃO PAULO


A Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN, na sigla em inglês) divulga na quarta-feira, 16, a 13.ª edição do Relatório da Liberdade Religiosa no Mundo. O relatório é elaborado de dois em dois anos e avalia questões relacionadas com a liberdade religiosa de todos os grupos religiosos em 196 países. 

Esse relatório sobre a liberdade religiosa no mundo conclui que, no período em análise, houve a diminuição em 11 – quase metade – dos 23 países com as piores violações. Nos outros sete países dessa categoria, os problemas já eram tão grandes que dificilmente poderiam ficar piores. “A nossa análise também revela que dos 38 países com violações mais significativas da liberdade religiosa, 55% permaneceram estáveis em relação à liberdade religiosa e, em 8%, nomeadamente no Butão, no Egito e no Catar, a situação melhorou”, consta no documento.

O texto aprofunda os problemas dos países em que “uma religião específica é identificada com o estado-nação”. Nesses casos, “os governos e os legisladores defenderam os direitos dessa fé por oposição aos direitos das minorias. As provas sugerem que os países que adotaram uma religião do Estado nas últimas décadas mostram uma tendência para desenvolver ‘leis antiblasfêmia’ que estão abertas ao uso indevido”, continua o relatório.

No Oriente Médio, particularmente, há uma significativa perseguição e, consequentemente, diminuição do número de cristãos. Um exemplo apresentado é Aleppo, a cidade síria no centro da guerra civil. A população total diminuiu de 2,3 milhões para 1,6 milhão (-30%). No entanto, os principais parceiros de projeto disseram à Fundação ACN que, no mesmo período, os cristãos tinham diminuído em 80%, ficando reduzidos a cerca de 35 mil. O declínio revela sinais de aceleração, com relatos do ano passado advertindo para o desaparecimento do Cristianismo no Iraque em um prazo de cinco anos.

Mostra-se, ainda, o surgimento de um outro fenômeno de violência com motivação religiosa, que pode ser descrito como hiperextremismo islamita, um processo de radicalização intensificada, sem precedentes na sua expressão violenta. As suas características são: crença extremista e um sistema radical de lei e governo; tentativas sistemáticas de aniquilar ou afastar todos os grupos que não concordem com a sua perspectiva, incluindo correligionários: moderados e aqueles com diferentes tradições; tratamento cruel das vítimas; uso das redes sociais mais recentes, principalmente para recrutar seguidores e intimidar os opositores, por meio da exibição de violência extrema; impacto global, tornado possível com os grupos extremistas filiados e as redes de apoio com bons recursos.

Após esse panorama acerca das questões de perseguição no Oriente, o relatório destaca que as tensões sobre o lugar da religião no Ocidente são brandas em comparação com outras partes do mundo. 
Porém, no Ocidente, os grupos religiosos são pressionados por um processo cada vez maior de secularização. As questões em torno da fé estão cada vez mais centradas na objeção de consciência. Em uma sociedade secular, que trata a religião como um assunto privado e a livre escolha como o direito mais importante, os incidentes revelam os problemas que surgem quando médicos, enfermeiros e outros funcionários públicos são ameaçados com a perda de emprego ou uma ação judicial, se seguirem a sua consciência, recusando-se, por exemplo, a realizar abortos ou a presidir uniões civis.

Piora a perseguição pelo mundo

Em alguns países, houve, nestes dois anos, uma piora na situação de perseguição religiosa. Esse é o caso de Bangladesh e da China, por exemplo.  O relatório aponta que os motivos e os principais violadores são distintos em cada um deles. Em Bangladesh, os responsáveis são entidades não estatais internacionais e locais, e os principais alvos são os grupos religiosos minoritários. Houve um aumento de ataques fatais a cristãos, hindus e outros, com clero e convertidos mortos e outros sob ameaças. Esse aumento está relacionado a uma decisão do Supremo Tribunal, em março de 2016, que confirmou o Islamismo como religião do Estado.

Já na China, o principal violador é o Estado. Uma lei da Segurança Nacional foi publicada em julho de 2015, com diretivas para as religiões seguirem. Bem como na Eritreia, onde 85 adeptos das Testemunhas de Jeová foram encarcerados devido à sua recusa de pegar em armas. Além disso, ao menos 3 mil cristãos estão presos por causa da sua crença. Estado e entidades não estatais são os responsáveis pela perseguição na Indonésia, país com 147 “leis e políticas discriminatórias” em relação às religiões. Desde 2003, 150 pessoas foram presas ou detidas no âmbito das “leis da blasfêmia”. No Níger, apenas entidades não estatais internacionais contribuem para que haja um aumento no número de casos, em especial  o Boko Haram. Em janeiro de 2015, dez pessoas foram mortas e 80% das igrejas no país violentamente atacadas e incendiadas como reação a uma sátira do jornal Charlie Hebdo.

Em relação ao Boko Haram, na Nigéria, embora a situação tenha permanecido igual, 219 das 279 garotas raptadas em 2014 ainda estão desaparecidas até hoje. Contudo, os líderes religiosos apoiam publicamente gestos de convivência pacífica e resolução de conflitos. Lá, mais de 2,5 milhões de pessoas foram deslocadas pela violência.
A realidade do Iêmen agravou-se pelas entidades não estatais. O grupo Estado Islâmico (EI) reivindicou responsabilidade de “uma série” de ataques a mesquitas xiitas. Em março de 2016, quatro Missionárias da Caridade estavam entre os 16 mortos durante um ataque islâmico e um sacerdote foi raptado. Também no Iêmen, Israel evacuou secretamente 19 judeus em plena escalada de violência e discriminação.


O panorama brasileiro


Em 2015, o Brasil ficou chocado quando uma menina de 11 anos foi agredida no subúrbio do Rio de Janeiro por intolerância religiosa. Kailane Campos é candomblecista e foi apedrejada na saída de uma festa do local de culto, mais conhecido como terreiro. 
Ela e a avó, que é mãe de santo, estavam vestidas de branco, porque tinham acabado de sair do culto. Em grupo, elas caminhavam para casa, na Vila da Penha, quando dois homens começaram a insultar a todos. Um deles jogou uma pedra, que bateu num poste e depois atingiu a menina. Na delegacia, o caso foi registrado como preconceito de raça, cor, etnia ou religião e também como lesão corporal, provocada pela pedrada. Os agressores fugiram num ônibus que passava pela avenida Meriti, no mesmo bairro. 

Esse é apenas um dos muitos casos de intolerância religiosa no país. De acordo com a pesquisa da Ajuda à Igreja que Sofre, o Disque 100 registrou 543 denúncias de violações de direitos por discriminação religiosa entre 2011 e 2014. Desse total, em 216 houve informações sobre a religião ou não profissão religiosa da vítima: 35% candomblé e umbanda, 27% evangélicos, 12% espíritas, 10% católicos, 4% ateus, 3% judeus, 2% muçulmanos e 7% outras religiões.  Observa-se que os fiéis das religiões afro-brasileiras (0,35% da população total) e os muçulmanos (cerca de 0,01% da população) são os que mais sofrem com a discriminação.

Apesar da preocupação do governo federal em combater todas as formas de discriminação, o Brasil tem conflitos em nível governamental relativos ao conceito de laicismo e à sua aplicação nas políticas públicas. A disputa é semelhante à de outros países ocidentais e tem principalmente a ver com assuntos como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e educação religiosa confessional. 
Em relação ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, segundo o relatório, as posições dos defensores da vida e da família são associadas ao fundamentalismo religioso, consideradas preconceituosas e contrárias às liberdades e direitos individuais. Os grupos religiosos e os militantes pró-vida alegam que as acusações de fundamentalismo e confessionalismo são usadas para lhes tirar o direito de expressão na defesa dos direitos humanos.

A educação religiosa nas escolas públicas brasileiras encontra forte oposição, apesar de estar prevista na Constituição. A Igreja Católica argumenta que essa educação é essencial para a formação religiosa e que todas as religiões têm um lugar nas escolas públicas. Os opositores argumentam que essa posição mina o princípio da laicidade do Estado. A questão, porém, pode desenvolver-se na forma de um veto ao ensino religioso nas escolas ou numa definição por parte do Estado em relação ao conteúdo desse ensino, implicando uma forma de controle sobre o direito de crença. 

Ataque às religiões de matriz africana e muçulmanos

Os números variam ligeiramente entre 2012-2013 (340 ocorrências) e 2014-2015 (372 ocorrências). O Rio de Janeiro e o Distrito Federal foram as unidades federativas com o maior número de casos registrados. O Rio é também onde há maior diversidade religiosa, com a mais elevada porcentagem de seguidores das religiões afro-brasileiras. 
A situação dos adeptos das religiões afro-brasileiras é a mais frágil. São vítimas de preconceitos históricos, de cunho racista, associados ainda ao período da escravidão. Além disso, devido às origens africanas, há preconceitos relacionados à mentalidade ocidental. Os ataques aos “terreiros” podem ir desde o abuso verbal e garrafas atiradas à total destruição desses locais de culto. 

Os muçulmanos começam a ser vítimas de preconceitos gerados pela associação entre o Islamismo e o terrorismo. A população não se dá conta de que a maioria dos muçulmanos não é de terroristas e que os refugiados muçulmanos são precisamente aqueles que também sofrem com o terrorismo.
“A intolerância religiosa no Brasil encontra-se num momento peculiar. As formas tradicionais de intolerância, escondidas sob a imagem de uma sociedade mestiça e integrada, estão sendo denunciadas, e existe um esforço para a sua superação. No entanto, novas situações estão surgindo em função da diversificação religiosa da população e da influência dos conflitos internacionais. Nesse contexto, o diálogo inter-religioso revela-se particularmente importante para superar preconceitos e possibilitar maior integração social”, afirma o relatório.

 

Reportagem publicada no Jornal O SÃO PAULO - Edição 3128 - De 16 a 22 de novembro de 2016