Marcas mais fortes que as do tempo

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A violência contra os idosos é uma realidade mais comum do que se imagina e acontece, em muitos casos, dentro do próprio círculo familiar.
Publicado em: 17/08/2016 - 17:15
Créditos: Texto: Nayá Fernandes / Ilustração :Sergio Ricciuto Conte

Aos 64 anos sai de casa ao anoitecer com sua bicicleta pela pequena cidade de Unaí (MG). Não esperava que naquele dia, porém, um rapaz de carro iria atropelá-lo propositalmente, após dizer a frase: “Ô velhinho, sai do meio da rua! ” José Joaquim de Sousa respondeu dizendo que não estava no meio da rua, mas enraivecido o homem deu ré no carro e derrubou Joaquim no chão. Machucado, ele foi ajudado por outras pessoas a se levantar e o dono do carro fugiu.

Casos de intolerância e violência se repetem de diferentes formas e, no exemplo citado acima, não teve punição, apesar de ter ocorrido entre dois estranhos. Mas, grande parte dos casos não têm punição pois acontecem entre os membros da própria família. Acontece que, por se tratarem de pessoas conhecidas e, muitas vezes até muito próximas, os idosos têm medo ou preferem preservar o agressor.

A Organização Mundial de Saúde, define violência contra a pessoa idosa como “ações ou omissões cometidas uma vez ou muitas vezes, prejudicando a integridade física e emocional da pessoa idosa, impedindo o desempenho de seu papel social. A violência acontece como 

uma quebra de expectativa positiva por parte das pessoas que a cercam, sobretudo dos filhos, dos cônjuges, dos parentes, dos cuidadores, da comunidade e da sociedade em geral”.

É importante considerar, contudo, que “a população idosa é constituída por diversas faixas etárias, as pessoas vivem, por exemplo, com rendas diferentes.  Muitos idosos contribuem com uma parcela significativa do orçamento familiar, cuidam de netos. Outros acamados necessitam de cuidados permanentes. Enfim, há uma variedade de traços e particularidades que tornam a população idosa bastante heterogênea”, lembrou Áurea Soares Barroso, membro da equipe nacional da Pastoral da Pessoa Idosa (PPI), mestre em Gerontologia e doutora em Serviço Social. Ela insistiu que compreender essas distinções é essencial para não alimentar um discurso de preconceito contra os idosos que, de alguma forma, antecede os diversos tipos de violência sofrida por eles.

Por ocasião dos 10 Anos do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, em 2013, a Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal publicou uma coletânea de publicações, textos e diretrizes resultantes do trabalho desenvolvido ao longo desse período e por profissionais especializados no assunto ,com base em suas próprias perspectivas e reflexões pessoais. Logo no início, o texto apresenta um panorama da situação do idoso e afirma que a terceira idade “é uma etapa da vida em que se apresentam limitações e a pessoa idosa perde o papel social que ocupava anteriormente. A falta de modelos prévios de inserção social desta população oportunizou situações de exclusão que afetaram sua qualidade de vida, dignidade e o exercício de seus direitos humanos conquistados. Novas necessidades foram explicitadas pela pessoa idosa, como de autonomia, mobilidade, acesso a informações, serviços, segurança e saúde preventiva”. Tais situações de exclusão são em si exemplos de violência social, mas além desses, há outros casos que incluem a violação física e até abusos sexuais.

Para que o tema da violência contra os idosos, ainda pouco discutido na sociedade, tenha uma maior repercussão e possa ser um alerta para que os idosos, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa instituiu 

em 2006, o Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa, lembrado a cada ano, no dia 15 de junho. O principal objetivo é criar uma mobilização mundial visando criar uma consciência sobre o assunto e que não pode ser tratado como normal. Para marcar a data na cidade de São Paulo, a PPI em parceria com a promotoria da área do idoso, promoveu um evento para refletir sobre esta data.

 

Pouco se fala sobre isso

Áurea comentou à reportagem que, segundo estudos realizados por Maria Cecília Minayo, da Fiocruz, até os anos 2000 foram localizados apenas sete trabalhos publicados na área da saúde sobre essa questão. A partir desse período, o número foi crescendo de forma significativa. “No Brasil, nos últimos anos, o debate foi ganhando maior visibilidade e densidade, por diversas razões, como o envelhecimento da população que tem despertado interesse de gestores públicos” salientou.

“Os idosos estão saindo de suas casas e ocupando o espaço público. Em quase todos os municípios brasileiros há serviços de convivência, lazer e cultural que são oferecidos pelo poder público ou ONGs para grupo etário. Iniciativas com essa finalidade têm contribuído para ampliação da autonomia dos idosos. Ao frequentarem esses espaços, os idosos se sentem mais fortalecidos emocionalmente e menos vulneráveis à violência doméstica, local onde acontece a maioria das agressões”, continuou Áurea.

Délton Esteves Pastore, promotor de Justiça de Direitos Humanos da Área do Idoso lembrou que “o envelhecimento da população brasileira está dentre as preocupações do poder constituído, por quaisquer das suas esferas políticas e deve contar com o suporte da sociedade para a minimização dos efeitos que o fenômeno acarreta. Considerando-se que hoje, 12% da população é considerada idosa , 

ou seja, que tem 60 anos ou mais, e que até 2050 esse percentual sofrerá sensível e considerável aumento, ao mesmo tempo em que as famílias têm reduzido o número de filhos por casal; a família, a sociedade, a comunidade e o estado devem dar as mãos para o seu enfrentamento”.

Ele explicou à reportagem do O SÃO PAULO que são várias as modalidades desses maus tratos, pois a violência contra a pessoa idosa apresenta-se subdividida nas seguintes espécies: física; psicológica ou emocional; sexual; financeira, econômica, patrimonial ou material; abandono ou negligência, e para alguns autores devem se acrescentar a institucional e a autonegligência.

 

O agressor pode estar bem perto

E o fato de a violência contra o idoso acontecer, na maior parte das vezes, no circuito familiar, dificulta ainda mais o reconhecimento por parte do próprio sujeito que sofre de reconhecer-se numa situação de violência. Délton salientou ainda que está presente em todas as classes e lugares. “A violência praticada contra a pessoa idosa, por ser universal, está presente em qualquer classe social, pode ocorrer em qualquer lugar, seja na via pública, nos serviços de acolhimento, nas unidades de saúde e até mesmo dentro do seu lar natural. O idoso abandonado pelos filhos na sua própria casa, sem que receba visitas ou os cuidados de que necessita; o que é negligenciado pelos órgãos públicos e privados, que não lhes dispensa o necessário tratamento que a lei lhe assegura, como a preferência em filas, atendimento na área da saúde, vagas reservadas em estacionamentos, assento reservado no transporte público.”

Délton disse ainda que qualquer um pode ser ator. “Em se tratando de violência praticada no seio familiar, por um ou mais dos seus integrantes, muitas vezes o idoso adota postura de defesa do ente querido, buscando minimizar a violência de que é vítima, valendo 

lembrar aquele ditado popular: ‘ruim com ele, pior sem ele’. São situações que exigem muita sensibilidade para a busca da melhor solução. Evidentemente, se o idoso é espancado ou abusado de alguma maneira, a melhor saída é a separação dele e do agressor. ”

Áurea, que pela Pastoral da Pessoa Idosa realiza visitas às casas dos idosos,  reforçou que “os dados revelam que as violações mais comuns são a negligência, a violência física ou psicológica e o abuso financeiro e econômico, também chamado de violência patrimonial. Isso acontece, geralmente, quando a pessoa perde a capacidade de gerenciar os seus recursos e necessita de ajuda de terceiros para realizar operações financeiras.  No primeiro quadrimestre de 2016, este tipo de violação representa quase 39% dos casos denunciados.” Conceição Aparecida de Carvalho, coordenadora Arquidiocesana da PPI em São Paulo, ressaltou que “muitos idosos ficam constrangidos em falar sobre o assunto”.

Na cidade de São José dos Campos (SP), o casal Josely e Aparecido Antunes Paschoal está acompanhando uma senhora que era cuidada por um senhor amigo da família e, desde que este senhor morreu, ela passou aos cuidados do filho e da nora. “Porém, eles não davam a assistência necessária, ao ponto de negligência. Ao conhecermos e vermos a situação, chamamos imediatamente o Samu e ela ficou internada por mais de 50 dias. Na ocasião, fizemos a denúncia para o Conselho do Idoso do Município, que advertiu a família Hoje auxiliada por uma sobrinha que com o valor da pensão da própria idosa paga uma outra pessoa para ajudar, ela está numa situação bem melhor e, além disso, damos a assistência necessária, na medida do possível”, contou Aparecido.

A sensibilidade e cuidado com os idosos é uma tarefa coletiva, tanto quanto o é, o cuidado com as crianças e adolescentes. Porém, numa sociedade onde se valoriza mais o corpo, a vitalidade, a agilidade e a tecnologia do que a experiência por exemplo, os idosos tornam-se alvo de preconceito e são esquecidos como se não fosse mais necessários para a convivência social. Tal realidade pode ser facilmente verificada quando alguém reclama da presença de um idoso ocupando lugares nos transportes públicos ou em espaços de lazer.

Um lugar para recomeçar

O Disque 100, canal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebe denúncias de violações de direitos. Registrou 12.454 denúncias de violência contra a pessoa idosa nos quatro primeiros meses de 2016, de janeiro a abril.

As representações recebidas pela Promotoria de Justiça do Idoso chegam por várias vias, tais como: Rede pública da Assistência ou da Saúde, Disque 100 (Secretaria Nacional de Direitos Humanos), Ouvidoria do Ministério Público, Poder Judiciário, atendimento ao público, etc. Esses são alguns dos canais em que os idosos podem fazer a denúncia caso estejam sendo vítimas ou conheçam pessoas que precisam de ajuda.

Caso haja indícios de violência, o representante (pessoa que leva ao conhecimento da autoridade essa espécie de evento) poderá se dirigir a uma Delegacia de Polícia, de preferência a do Idoso, Polícia Militar, Ministério Público, Rede Pública da Assistência ou da Saúde.

Já no trabalho da Pastoral da Pessoa Idosa, os líderes, pessoas preparadas para visitar as pessoas idosas e, além de outros cuidados, conversar sobre a mesma fé que os une, são orientados a respeitarem a dinâmica de cada  família, observar uma situação que pode indicar algum tipo de violência e procurar a ajuda de profissionais do Serviço Social, da saúde, entre outros.

Conceição afirmou “que muitos casos chegam à Pastoral após estas visitas domiciliares mensais, por ligações recebidas e, às vezes, por pessoas que procuram diretamente as paróquias da comunidade, buscando soluções. Relatos comprovam que, após essas denúncias há melhoras e os idosos passam a receber mais atenção de seus familiares como alimentação adequada e cuidados com a higiene”.

No artigo 193 da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, sobre o amor na família, o Papa Francisco afirma que “uma família que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família desintegrada; mas uma família que recorda é uma família com futuro. Por isso, numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são descartados porque criam problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte porque se separa das próprias raízes”. 

Onde denunciar?

Disque 100 – da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos –  Basta ligar para o número 100, de qualquer telefone. Não é necessário se identificar, mas a pessoa deve fornecer dados bem completos da vítima e, se for possível, do agressor. Entretanto, as soluções exigem encaminhamentos e providências com resultados nem sempre imediatos, pois este órgão Nacional terá de fazer contatos com os Órgãos Locais;

Conselho Municipal do Idoso (CMI) – Não é executor da política, mas lhe compete zelar pelo cumprimento do direito do idoso. Ele avaliará a denúncia e cobrará ação dos órgãos municipais competentes;

CREAS/PAEFI – serviço de proteção e atendimento especializado a famílias e indivíduos (se não houver CREAS no município, denunciar para a Secretaria Municipal de Assistência Social ou equivalente);

Delegacia do Idoso ou Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso;

Ministério Público do Município ou Comarca – Promotoria de Justiça, Órgão fiscalizador da Lei, que atua na garantia dos direitos individuais e coletivos, prevenindo violações ou propondo medidas no caso de ofensa aos direitos da coletividade ou quando o idoso não estando em plena condições de autonomia, encontrar-se em risco, sem o apoio familiar.

Procon – Quando se tratar de abuso contra o idoso enquanto consumidor, como por exemplo, alguém que tenta convencê-lo a fazer empréstimos e depois cobrar juros abusivos.

Publicado em O SÃO PAULO, ed. 3115 em 17/08/2016