Espiritualidade e crise (II)

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30/09/2015 - 09:00

Publicado no Jornal O SÃO PAULO -Edição 3071 - De 30 de setembro a 6 de outubro de 2015

Ao longo de toda a história da Igreja, encontramos relatos de vidas de homens e mulheres que enfrentaram suas crises e souberam dar uma resposta a partir da fé. A semelhança entre esses relatos e aqueles tirados da Sagrada Escritura não é um exagero. Trata-se de uma mesma realidade de vida, alimentada pelo Espírito, em tempos e situações diferentes. Cada pessoa é um capítulo do mesmo livro que narra o encontro entre Deus e sua criatura na história.

O apóstolo Paulo é um exemplo dessa síntese. Sua vida transcorreu entre a formação do Novo Testamento e o surgimento das primeiras comunidades cristãs. E foi nesse ambiente que ele fez a sua experiência pessoal de fé e crise. No caminho de Damasco, perseguindo os adeptos da “nova seita”, os seguidores de Jesus, Paulo tinha por objetivo reestabelecer as tradições do seu povo. Mas a experiência do encontro com o Senhor fez com que ele tivesse que reorientar suas iniciativas e sua missão, passando de perseguidor a perseguido. E essa não foi a única crise.

Em sua vida ministerial, Paulo precisou mudar os destinatários de sua pregação, partindo para evangelizar os gentios. Ele precisou, ainda, enfrentar crises de desconfiança da sua pregação, de conflitos internos e entre as comunidades e suas lideranças. Ao final, depois de superar as crises, Paulo contemplou sua vida e concluiu que tudo fazia parte do que ele mesmo chamou de bom combate (cf. 2Tm 4,7).

Mas nenhum desses testemunhos individuais seria capaz de realizar a expectativa de sentido que o pecado impôs ao homem. Foi preciso esperar a “plenitude dos tempos” (cf. Gl 4, 4) para que a descendência da mulher cumprisse a promessa, resgatando o sentido da criação: “Na realidade, o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” (GS 22). Na experiência de Jesus, testemunhada pelos discípulos, a humanidade chega à sua crise definitiva.

Durante sua pregação Jesus realizou muitos sinais, curas e milagres, com a intenção de falar do Reino de Deus. Seu agir e suas palavras colocaram em crise um modo de ser e de pensar, as práticas religiosas, culturais e sociais de seu tempo e todos os tempos. Mas sua entrada em Jerusalém marcou um novo desdobramento da missão, com a morte na cruz. Os discípulos foram atingidos, em cheio, por esse acontecimento. Como superar o fracasso da cruz, enxergando nesse lugar a presença e a ação de Deus? Como ver no sacrifício da cruz o gesto que esmaga a cabeça da serpente?

Estamos vivendo um tempo de crise e esse é um pensamento comum. Todos os dias recebemos notícias sobre crises nacionais e internacionais. Em nossas conversas, em nossos encontros e reuniões festivas ou de trabalho, falamos sobre crise. Melhor seria dizer que estamos vivendo um tempo de novas crises.

Mas o povo de Deus é um povo habituado com as crises, não porque as procure, mas porque se encontra com elas em sua história. Assim como o crisol é submetido ao calor intenso para purificar o metal, a vida do cristão é provada pelo calor dos acontecimentos da vida.

O Papa Francisco, na Bula MisericordiaeVultus, nos convida a não gastarmos esforços em elaborar “diagnósticos desalentadores”, mas a distribuirmos “remédios de esperança”. Dessa forma, a pergunta mais importante não é pela origem de uma crise; o que realmente importa é saber como respondemos a ela: se com esperança ou desânimo, se com coragem e confiança ou com medo.

Diante do mistério da cruz, os discípulos se assustaram, se afastaram, alguns começaram a retomar suas atividades (Lc 24, 13). Mas o encontro com o Ressuscitado foi o momento da transformação do medo em anúncio. O anúncio de que a promessa foi cumprida e a cabeça da serpente foi esmagada. Assim, se a experiência de fé não esconde a dor do sofrimento, a fé sustentada pela esperança alcança a realização da promessa. No mistério da sua paixão, Jesus venceu a desconfiança do homem em Deus, pela cruz e pela ressureição.

Em tempos de crise social, moral, econômica e também de fé, é preciso fortalecer entre nós um modo de vida alimentado pela espiritualidade da esperança, que brota da ressurreição do Senhor e que se torna para o mundo um anuncio profético da certeza da presença de Deus na história. Não escolhemos as crises, mas podemos escolher como vamos enfrentá-las.

Dom Devair Araújo da Fonseca

Bispo Auxiliar de São Paulo

Vigário Episcopal da Região Brasilândia