Desceu à mansão dos mortos

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08/04/2023 - 08:45

Na liturgia católica, celebra-se hoje o sábado santo, dedicado ao recolhimento e à reflexão sobre o significado da vida e da esperança cristã na superação da morte corporal, mediante a redenção da nossa condição mortal. Um dos artigos da fé cristã diz que Jesus, morto na cruz e sepultado, “desceu à mansão dos mortos”. Com a afirmação da “descida de Jesus à mansão dos mortos”, ou morada dos mortos, não se quis deixar margem a dúvidas sobre a morte verdadeira de Jesus, e não apenas morte aparente.

A expressão da “descida à mansão dos mortos” sempre despertou a curiosidade sobre o que Jesus teria ido fazer entre os mortos, antes de sua ressurreição “ao terceiro dia”, como os cristãos anunciam na Páscoa. Uma preciosa homilia de um pregador anônimo do século IV, conservada na liturgia cristã, o explica com imagens sugestivas. Um grande silêncio e uma profunda solidão envolveram o mundo, porque o Filho de Deus, por um pouco, deixou de fazer companhia aos vivos. Ele foi visitar os falecidos e juntou-se aos que estavam nas sombras da morte, para acordar os que dormiam há séculos, para lhes levar a boa notícia da redenção e do triunfo da vida.

Jesus entrou onde os mortos estavam, levando na mão sua cruz vitoriosa. Antes de todos, dirigiu-se a Adão, “nosso primeiro pai, a ovelha perdida”, para o libertar da morte. E foi Adão o primeiro a reconhecer seu Salvador, falando a todos os demais: “O meu Senhor está no meio de nós!”. E Cristo, tomando-o pela mão, respondeu: “Acorda, tu que dormes, levanta-te dos mortos! Eu sou o teu Deus, que por tua causa me tornei teu filho; por ti e por aqueles que nasceram de ti, agora ordeno: saí, vinde para a luz, levantai-vos!”.

A linguagem sobre a descida de Jesus entre os mortos traduz a fé da Igreja, segundo a qual Ele entregou sua vida por toda a humanidade, por quem viveu antes dele e também pelos que haveriam de nascer depois dele. A vitória da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio, da verdade sobre a falsidade é boa notícia para todos; a cruz e a ressurreição de Jesus significam a redenção de toda contradição e precariedade vividas pela humanidade. O anseio pela vida plena, a superação das limitações e dos males que nos atingem têm sua resposta no mistério celebrado na Páscoa.

O pregador do século IV continua a reportar as palavras do Redentor aos que jaziam na “mansão dos mortos”: “Acorda, tu que dormes, porque não te criei para permaneceres aqui. Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te, obra de minhas mãos, minha imagem, tu que foste criado à minha semelhança. Levanta-te, saiamos daqui, tu em mim e eu em ti”. A fé cristã na ressurreição é a resposta cabal para o mistério da vida e tem seu fundamento na ressurreição de Jesus Cristo. Não existimos para o aniquilamento e a extinção. Nossa existência seria um projeto frustrado, se não houvesse uma resposta radical para a realidade da morte.

A sabedoria bíblica e o ensinamento do próprio Jesus e dos apóstolos iluminam as perguntas antigas e sempre atuais que brotam da fé cristã. Por que o Filho de Deus assumiu a condição humana, tornando-se um de nós? Por que ele, justo e inocente, sofreu a morte de cruz? Alguma força superior lhe impunha isso com sádica satisfação? Segue, ainda, o diálogo entre Jesus e Adão, na morada dos mortos: “Por ti, eu, teu Deus, me tornei teu filho. Por ti, eu, o Senhor, me tornei teu servo. Por ti, eu, que habito no mais alto dos céus, desci à terra e fui até mesmo sepultado debaixo da terra”.

O drama dos sofrimentos, desprezo e humilhações de Jesus, que culminou na sua morte na cruz, não tem explicação humana razoável, como não têm explicação aceitável o desprezo, a tortura e a condenação injusta de qualquer pessoa. A única explicação razoável para a paixão e morte de Jesus na cruz vem dos seus próprios lábios: “O bom pastor entrega a vida pelas ovelhas” (Jo 10,11). O evangelho de São João, no início da narração da última ceia, traz essa observação: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Até o extremo. Só o amor de Deus é capaz disso.

Recordando todas as humilhações sofridas, Jesus diz ainda a Adão e a todos os seus descendentes já adormecidos, à espera de serem acordados do sono da morte: “Vê em meu rosto os escarros, que por ti recebi, para restituir-te o sopro da vida original. Vê na minha face as bofetadas que levei para restaurar, conforme minha imagem, a tua beleza corrompida”. Enfim, Adão ouve essas palavras consoladoras: “O inimigo afastou de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto de ti”.

A morte e a sepultura de Jesus foram a consequência máxima da sua solidariedade para com a condição humana: amou até o fim, até as últimas consequências. E, partilhando a condição dos mortais, ele pôde levar a boa nova da vida e da salvação a todos: “Levanta-te, vamo-nos daqui!”. A morte não é o fim de tudo, porque aquele que tem o poder de dar a vida passou por ela e renovou a esperança de vida.

Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo Metropolitano de São Paulo 

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 8 de abril de 2023