Não é bom que o homem esteja só

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08/10/2015 - 14:45

No Domingo, 4 de outubro, o Papa Francisco presidiu a Missa de abertura da 14ª. Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos na Basílica de São Pedro, no Vaticano, rodeado de mais de 250 Padres sinodais, cardeais e bispos provenientes de todas as partes do mundo. Durante a longa procissão de entrada dos concelebrantes, o povo acompanhava o coral da Basílica no canto das ladainhas, invocando a intercessão de todos os santos para o bom êxito do Sínodo. A Igreja reunida conta sempre com a presença e a participação da comunidade celeste.

A Liturgia do 27º Domingo do Tempo Comum parecia escolhida a dedo para a ocasião: a primeira leitura referia-se à criação da mulher e à vocação do casal inicial da humanidade ao matrimônio e à família; o Evangelho trazia a pergunta de alguns fariseus sobre a possibilidade de fazer o divórcio; Jesus responde com o ensinamento sobre a indissolubilidade da união matrimonial: foi assim que Deus quis “no princípio”. Na homilia, o Papa discorreu sobre os dois textos da Escritura, para iluminar o início dos trabalhos do Sínodo.

O tema da assembleia do Sínodo é “a vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”. Que dizer sobre esses tema numa cultura que tende a não orientar-se por valores e referências estáveis e universalmente válidos? Tudo se adapta ao gosto subjetivo e aos sentimentos do momento, quando não, às tendências do mercado... Tudo é descartável e segue as imposições constantemente mutáveis da opinião pública, geralmente forjadas por grupos de pressão ou de interesses particulares.

Perdeu-se muito do significado da família e, por isso, tantas pessoas já não vêm razão para casar e empenhar a vida num compromisso irrevogável a dois. Buscam-se as satisfações da vida afetiva e sexual sem o casamento e sem assumir um compromisso estável com ninguém. Há medo de penhorar a liberdade e a autonomia pessoal: para quê se amarrar, se dá para aproveitar a vida sem ter compromissos com ninguém? Para quê assumir deveres com marido ou mulher, ter filhos e fazer sacrifícios pelos outros?

O Papa Francisco respondeu a esses e outros questionamentos a partir do texto bíblico: “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Vivemos uma situação semelhante à de Adão, que estava consciente de seu poder e da sua superioridade em relação às demais criaturas, mas vivia só e infeliz: nos animais ao seu redor, plantas, pássaros e em todas as numerosas criaturas “não achou nenhuma que lhe correspondesse” (cf. Gn 2,20). E Deus se compadeceu do homem solitário: criou a mulher e lha apresentou como companheira. Adão reconheceu: “agora sim, é carne de minha carne e osso dos meus ossos” (cf Gn 2, 23). Adão e Eva se correspondiam, como se fossem um único ser.

Muitas são as solidões das pessoas de hoje, refletiu o Papa. Algumas decorrem das circunstâncias e precisam ser aliviadas com a ternura e a solidariedade. Muitas outras solidões, porém, decorrem da liberdade inconsequente, da busca individualista da felicidade e da pretensão do máximo gozo da vida sem a partilha generosa dos dons, das experiências afetivas fugazes, usando até mesmo as outras pessoas como objetos descartáveis para a satisfação individual. Tudo isso leva a uma grande solidão. O amor requer sempre correspondência e nunca pode ser apenas busca individual e subjetiva.

A instrumentalização da afetividade, da sexualidade e até do casamento em função de projetos solitários de felicidade leva ao vazio e à frustração existencial. E, então, é necessário interrogar-se novamente sobre a vocação originária da união conjugal e da família: são propostas de vida que requerem correspondência recíproca, complementariedade e generosidade capaz de sacrifícios pela pessoa amada. “Não é bom que o homem esteja só”: o amor altruísta e o pacto de vida a dois são o rumo indicado por Deus para o matrimônio e a família. São projetos de vida fecundos e geradores de alegria e de mais vida.

O Sínodo, reunido no Vaticano, deverá ajudar a lançar novas luzes sobre o casamento e a família nos dias de hoje. Mas, como recordou ainda o Papa, na fidelidade ao Evangelho, que não é objeto de museu, mas fonte inesgotável de vida nova para aqueles que o acolhem com fé.

Arcebispo de S.Paulo Publicado em O SÃO PAULO, de 08 10 2015