Tu me deste um corpo: A Espiritualidade cristã do corpo humano

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08/08/2022 - 20:45

“Tu me Deste um corpo” (Hb 10, 5). Este versículo está em perfeita conexão com o evento da encarnação. Deus assume um corpo, assume a carne humana, para entrar completamente na vida humana na pessoa de Jesus Cristo de Nazaré. Tal evento faz-nos perceber a importância da carne humana (Cf. Sl. 8, 4 - 8) e a dignidade do corpo humano como imagem e semelhança de Deus e habitação do sagrado. O nosso corpo é sagrado. E, por isso, Deus habitou a nossa humanidade.

      O nosso corpo é território do sagrado. É húmus santo. E a encarnação acontece não para confirmar um dado abstrato, mas uma realidade concreta situada num dado momento histórico e ampliada para além da história. Segundo Roy (2000), a dignidade de nosso corpo tem seu ponto mais elevado no instante da encarnação, obra que se dá em conjunto com o Espírito de Deus e o corpo de uma mulher, Maria. Não existem dúvidas e nem possiblidades de erro de caminhos semânticos. Para que o Espírito Santo pudesse se tornar presente enquanto ação criadora na história humana teria que tornar tangível a vontade do Divino. E essa se expressaria na misericórdia, na justiça, no perdão, na ternura, na acolhida, no gesto de sair de si na direção do outro. Portanto, necessitaria de um espaço corporal para o uso dos sentidos tornando concreto cada gesto de amor proveniente da ação da vontade de Deus. Daí, o espaço-Maria tornou-se a casa para a morada de Deus no meio da generosidade do corpo de uma mulher escolhida entre os pobres.

      O evento da encarnação, a partir do que Deus faz pelo corpo humano, nos revela o seu amor e a sua entrada no mundo pela porta da humanidade. O ser humano é o caminho concreto para a demonstração máxima do amor de Deus que assume um corpo até às últimas consequências da existência corporal. Ao assumir um corpo pobre e presente como Boa Nova junto aos sofredores, Jesus nos revela que Deus continua fiel à sua promessa de nunca abandonar o seu povo. Povo este que não é objeto da predileção divina por ser grande e poderoso, mas por ser fraco e pequeno (Cf. Dt 7, 7 – 8). Necessitado de proteção. Nessa escolha, a encarnação alcança seu ponto máximo no que diz respeito ao se aproximar do outro: tem-se que assumir a sua carne, o seu ponto mais fraco para que o ser humano seja reerguido. É num corpo que Deus demonstra-nos o seu poder e não a sua fraqueza. É também, a partir de um corpo, que Deus aponta para a nossa grandeza e dignidade.   

     Ser um corpo atuante no meio da humanidade é muito mais do que possuir órgãos interligados por veias e nervos. É possuir características que nos distingam dos seres irracionais e nos coloquem como administradores das coisas públicas e divinas. E isto com responsabilidade. Ser um corpo é sentir-se um entre os demais seres e estruturas criadas. Somos um corpo e não somente o temos como um peso, uma tenda de argila. Para Rocha (2012), nós somos um lugar sagrado enquanto corpo humano que possibilita a realização da vida motivada pelas exigências de convivências cotidianas. O outro ser humano como espaço sagrado nos abre à reflexão de que ninguém se constrói sozinho, partindo somente de seu mundo fechado. Mas, o nosso crescimento enquanto ser humano se dá nas fricções com os outros, nos encontros e desencontros da vida. Daí que podemos entender a outra pessoa como espaço aberto para as relações humanas que nos remetem ao cuidado que devemos ter com o outro. Esse cuidado nos constrói como pessoa. O contrário, nos destrói levando-nos ao abandono, frustrações, descaso, indiferença, desconstrução da identidade humana. Essa consciência relacional nos remete a uma comunidade. Nada formal. Mas, a necessidade de formarmos um grupo com ideais aproximados faz com que essa comunidade humana se torne o seu próprio espaço, ou o seu corpo comunitário. É essa comunidade que dá sentido para a conquista do seu próprio espaço social, onde evidentemente as coisas fazem sentido para ele pensando no outro ser humano (ROCHA, 2012, p. 178).

     Tendo consciência de nosso próprio corpo poderemos escrever nossa história. Pois o corpo é um texto que se torna memória e história viva expressando nossas dores, cicatrizes e estigmas. No corpo se escreve os processos de libertação ou de escravidão forjados na alteridade cotidiana. O corpo é texto vivo, ambulante que muitas vezes grita que deseja ser amado ou que quer amar. Na alteridade comunitária, ou seja, na alteridade que se constrói na comunidade, o corpo produz movimentos. E esses nos revelam “experiências, saberes e histórias contadas, registradas, buscando ressignificar a própria corporeidade” (STRÖHER, DEIFELT, MUSSKOPF, 2004, p. 10)

     Deus assume, então, um corpo. Encarna-se em nossa realidade histórica. O corpo assumido por Deus é o corpo de todo ser humano. Entretanto, o corpo mais sofrido e desprezado entre os seres humanos é o corpo de Deus por excelência, pois exige cuidados especiais e se torna o ponto central de nossa relação com o transcendente. Não podemos nos relacionar bem com Deus se desprezamos o corpo humano dos pobres ou, simplesmente ignorarmos as experiências no corpo humano.

     A espiritualidade cristã e o respeito ao corpo humano caminham juntos. Não dá para separar o corpo de uma espiritualidade libertadora e comprometida com os mais vulneráveis e frágeis. Esses corpos são os mais castigados pela dor e pela pobreza que muitas vezes se tornam miséria bruta. Para Sicre (2011, p. 583), os profetas não acreditam em um Deus que não se preocupa com a realidade de miséria das pessoas empobrecidas. Por isso, Deus não está do lado dos exploradores. E daí a relação direta entre culto e exortação profética exigindo a prática da justiça.

     O centro da profecia no Antigo Testamento e no Novo Testamento, com João e Jesus, é o corpo. E o corpo do pobre. Com o grupo da profecia redescobrimos o projeto de Deus que é para todos, mas principalmente, para os empobrecidos da terra. Os pobres são os preferidos de Deus por não possuírem mais ninguém em seu favor. Por dependerem unicamente do Altíssimo. E quando nos esquecemos de ser essa ponte, essa religação entre Deus e os empobrecidos, são enviados os profetas para nos lembrar do que é essencial na nossa fé: a opção pelo ser humano, opção pelo corpo sofrido e excluído. E essa opção, é a preferencial de Jesus que, como Deus, assume um corpo de homem pobre e periférico.

      A opção de Jesus em seu projeto de vida (Cf Lc 4, 18 - 19) deverá ser a opção da comunidade que o tem como referência na prática do amor.

Amar como Jesus [amou] gera conflito, ódio, expulsão, insulto e maldição. Contudo, não tenhamos medo de lutar e dar a vida. Não sejamos pessoas que querem se proteger, para serem bem-vistas e benquistas por todos. Assim como Jesus fez, podemos conversar com todos, mas temos de ter uma posição clara. No seguimento de Jesus, apesar de tropeços e espinhos no pé, vamos achar o caminho amoroso que nos faz passar pela cruz e nos levar a uma vida imperecível e ressuscitada (LANCELLOTTI, 2021, p. 14).

      Nas atitudes e palavras de Jesus encontramos os olhares que se dirigem aos corpos que o acompanham. Seus olhos percebem, iluminados pelos sentimentos, os corpos sofredores. Não são pessoas alheias. São pessoas sofredoras. Locais da preferência do Deus de Jesus. Os olhares de Jesus exigem gestos que tomem posição. E por isso, ele sente compaixão tomando atitudes que geram a vida ao seu redor. Motivado por seu projeto inspirado no ser humano, Jesus olha, caminha no meio do povo e permite às pessoas sentirem-no através das curas dos corpos e dos gestos libertadores.

Referências bibliográficas:

LANCELLOTTI, Júlio. Amor à maneira de Deus. São Paulo: Planeta, 2021.

ROCHA, Abdruschin Schaeffer. Hermenêutica do cuidado pastoral. Lendo textos e pessoas num mundo paradoxal. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012.

ROY, Ana. Tu me deste um corpo. São Paulo: Paulinas, 2000.      

SICRE, José Luís. Com os pobres da terra. A justiça social nos profetas de Israel. Santo André, São Paulo: Ed. Academia Cristã Ltda; Paulus Editora, 2011.

STRÖHER, Marga J., DEIFELT, Vanda e MUSSKOPF, André S. (Orgs.). À flor da pele. Ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo, RS: Sinodal; CEBI, 2004.

 

Pe. Dr. Gilberto Orácio de Aguiar

Doutor em Ciências Sociais (Antropologia), PUC/SP; Mestre em Ciências da Religião, PUC/GO. Com especialização em Teologia e História; Hermenêutica Contextualizada; Espiritualidade e Doutrina Social da Igreja (Em andamento). Coordenador do Setor Conquista. Professor de teologia na Escola de Teologia Pastoral do Setor Conquista e Pároco na Paróquia Imaculado Coração de Maria, Setor Conquista.